Voz
do atrevimento
Pedro
J. Bondaczuk
A
palavra “atrevimento” (como tantas outras expressões, em
qualquer idioma) tem dupla conotação: uma positiva e outra
negativa. Geralmente consideramos atrevida a pessoa desconhecida que
nos dirige a palavra de forma abrupta, agressiva, senão brutal. Ou
a, que sem mais e nem menos, ocupa o lugar que era nosso numa fila
qualquer. Ou a que dá uma cantada numa mulher bonita que,
visivelmente, “não é para o seu bico” e que não lhe deu, dá
ou dará a mínima confiança.
Há,
é claro, muitas e muitas outras acepções negativas do termo que
nem é preciso mencionar, pois todos as conhecem, de sobejo.. Mas o
atrevido, também, é o indivíduo que realiza o que ninguém
conseguiu ainda realizar e que tinha toda a aparência de
irrealizável.
É
o que desafia as circunstâncias e faz coisas admiráveis. É o que
encara a vida com coragem e ousa ir contra a corrente, impondo, com
argumentos, idéias e convicções, mas com consciência e certeza
do que faz, e se dá bem. Para o escritor Henry Miller, “imaginação
é a voz do atrevimento”. Esse é o atrevimento que me fascina e me
mobiliza. Ou seja, o de imaginar alguma coisa que à primeira vista
pareça irrealizável, ousar e tentar concretizar o que foi
imaginado, e mesmo que não tiver sucesso, gozar da deliciosa
sensação de ao menos haver tentado.
A
realidade, nua e crua, é fria, é feia, é insuportável. A vida –
sempre convém reiterar, já que muitos parecem se esquecer disso –
não tem reprises. E é muito bom que não tenha mesmo. Seu maior
encanto é justamente este, o da novidade, mesmo que às vezes o
“novo” nos traga surpresas desagradáveis, não raro trágicas
até. O consolo, porém, é que no momento seguinte pode consertar
tudo e nos proporcionar alguma alegria que sequer desconfiávamos que
fosse possível. Por isso, atrever-se é preciso. Sempre!
A
propósito de hipotéticos (e impossíveis) recomeços, a escritora
Júlia Lopes de Almeida faz a seguinte constatação, no “Livro das
donas e donzelas” (pouco conhecido, mas que deveria ser lido,
sobretudo pelas mulheres): “O que torna a vida encantadora é o
imprevisto, e a prova é que ninguém desejaria recomeçá-la da
mesma forma porque já a viveu, nem creio mesmo que, se tal milagre
se pudesse cumprir, houvesse alguém, por mais venturosa que lhe
houvesse corrido a curta vida, que tivesse coragem de a recomeçar”.
Honestamente,
eu não a teria. Muitos até afirmam, ousadamente (ou seria impulsiva
temerariamente?), que gostariam dessa reprise. Mas são palavras
soltas ao vento, sem nenhuma reflexão ou fundamentação, ao sabor
do momento. Quando refletem, essas pessoas concluem que o que viveram
não foi sequer tão bom assim e muito menos o ideal.
Optam
por desejar – reitero, se fosse possível recomeçar a vida – não
só por um início diferente, mas também por um meio e fim
diferentes, bastante diversos daqueles pelos quais já passaram.
Júlia prossegue, em suas considerações: “Corra alguém os olhos,
pense, siga o curso da sua existência, e ficará convencido de que
só alguns dias lhe mereceram o desejo de serem revividos. Dias? Nada
mais que momentos, de inolvidável doçura”.
Valeria
a pena, pois, passar, novamente, pelos mesmíssimos dramas, dores,
incertezas e aflições pelos quais já passamos, apenas para reviver
escassos, pouquíssimos, raros e fugazes momentos de felicidade?
Creio que nem mesmo o mais masoquista dos masoquistas gostaria de
reviver tudo isso.
Ademais,
é possível que no segundo seguinte esteja o tosão de ouro, o Santo
Graal, o cálice sagrado da felicidade, que tanto procuramos e que
raros encontram algum dia. É verdade que pode estar, também, a
morte. Mas isso não há como evitar. Será sempre, sempre um dos
tantos riscos que teremos que correr.
Ouçamos,
pois, a voz do atrevimento, que algumas vezes não passa de quase
inaudível sussurro, mas que em outras é um grito, um brado, um
berro a nos desafiar. Não nos acovardemos nos refugiando na
comodidade da omissão. Sejamos ousados, posto com a necessária
prudência, e criemos as oportunidades que precisamos, caso elas não
surjam espontaneamente, como cavalos selados, à espera, apenas, de
serem montados.
Sejamos
atrevidos, sim, face às circunstâncias, favoráveis ou negativas,
não importa. No primeiro caso, para elevarmos ao máximo grau as
satisfações que venhamos a conquistar. No segundo, para pelo menos
tentar reverter o que pareça (e talvez de fato seja) irreversível.
Ousemos sonhar, cada vez mais, cada vez mais alto, cada vez mais
intensamente. Ousemos encarar o que outros já encararam, e
fracassaram. Ousemos, acima de tudo, dar asas velozes e fortes à
imaginação, essa voz alentadora do atrevimento (do saudável e
construtivo, convém sempre destacar).
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