Atitude justa, porém tardia
Pedro J. Bondaczuk
A União
dos Escritores da União Soviética está reparando, embora bastante
tardiamente (com quase 30 anos de atraso), uma das maiores injustiças
que já cometeu, ditada, certamente, pela abjeta bajulação de seus
membros e não por eventual falha de julgamento.
Está
reabilitando o único escritor do país a conquistar um Prêmio Nobel
de Literatura, Boris Pasternak, por seu delicioso romance “Doutor
Jivago”. Até hoje, ninguém entendeu, no Ocidente, o que levou
esse grupo de intelectuais a agir da maneira que agiu. Destilando seu
ódio (possivelmente voltado contra si mesmo, contra sua imensa
covardia face ao poder e aos poderosos) sobre um homem pacato, que
amava sua pátria e que jamais, em momento algum, compreendeu a razão
de ser considerado um dissidente político.
O
romancista “comeu o pão que o diabo amassou” apenas por ser
considerado genial além das fronteiras do território nacional. O
Cremlin entendeu que o fato dele ser escolhido para o Nobel
implicava, necessariamente, em alguma armadilha propagandística
contra a União Soviética. Qual, não importava.
O
regime desconfiava que ela existia, e pronto. Para “puxar o
saco”dos vetustos senhores da cúpula do Partido Comunista, então
comandados pelo campônio Nikita Kruschev, a União dos Escritores
precisava se adiantar ao governo. Urgia que se punisse o companheiro,
que ousara escrever uma obra capaz de despertar tamanho fascínio nos
“burgueses” do Ocidente.
E
o que fizeram, para realizar sua obra-prima de bajulação? Em
primeiro lugar, expulsaram Pasternak da entidade, o que equivale
dizer, fecharam as portas para que o romancista fosse publicado e,
portanto, lido, em seu próprio país. A seguir, pediram a cassação
da sua cidadania soviética, como se tivessem esse direito. E, por
último, desejaram expulsar o romancista (um patriota que confessou,
em pânico, em desespero, temendo perder o que mais amava: “Sair
das fronteiras da minha pátria significa para mim a morte”) da
própria União Soviética.
Felizmente,
para o escritor, seus companheiros tiveram ao menos esse gesto de
“piedade”. Deixaram-no9 continuar vivendo no país, que estava
sendo tão injusto com ele, mas que ele amava tanto. O festejado
Prêmio Nobel de Literatura no Ocidente era, em sua terra natal,
autêntico paria. Um intelectual maldito, marcado, visado, do qual
todos procuravam se afastar, como se fosse possuído de moléstia
altamente contagiosa.
Mas
seu romance “Doutor Jivago” sempre esteve despido de segundas
intenções. É uma história viva, humana, impregnada do calor da
autenticidade, escrita por alguém que tinha convicção do que
escrevia. É uma obra embebida de ternura, de compaixão pelos
defeitos e fraquezas humanos e principalmente de compreensão deles.
É
claro que seu estilo levemente irônico serviu de pretexto para que
aqueles que foram classificados por Alexander Soljenytsin de
“maquiadores literários” exclamassem o seu “Eureka” russo.
Para que descobrissem o que entendiam serem críticas veladas ao
sistema soviético de governo e que por isso agradavam aos
ocidentais.
Por
causa dessa sua paranóia, privaram os cidadãos desse país,
sabidamente amantes da boa literatura e entendedores de arte (os
russos produziram centenas de gênios literários, em todos os
tempos, isso não é segredo para ninguém), de uma obra humana,
talentosa, verossímil e, sobretudo, carregada de patriotismo. Que
geração infeliz foi essa que deixou que interesses mesquinhos lhe
obliterassem a razão e o senso de avaliação!
Hoje,
felizmente, Pasternak, que morreu em 1960, sozinho, amargurado e
injustiçado pela sua gente, está sendo, finalmente, reconhecido.
Afinal, graças ao trabalho de uns poucos que não se conformaram com
a burrice cometida por um bando de burocratas travestidos de
intelectuais, a verdade começa a ser restabelecida. E este é o
único caminho para a literatura russa sobreviver. Pois, como disse
com muita argúcia o dissidente Zamyatine: “...Se se esperar do
escritor que ele seja um crente real e fiel, se não lhe for
permitido ironizar, como Swift, ou rir de tudo, como Anatole
France..., receio que a literatura russa só terá um futuro: o
passado”.
(Artigo
publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 24 de
fevereiro de 1987).
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