Friday, April 28, 2017

Atitude justa, porém tardia



Pedro J. Bondaczuk



A União dos Escritores da União Soviética está reparando, embora bastante tardiamente (com quase 30 anos de atraso), uma das maiores injustiças que já cometeu, ditada, certamente, pela abjeta bajulação de seus membros e não por eventual falha de julgamento.

Está reabilitando o único escritor do país a conquistar um Prêmio Nobel de Literatura, Boris Pasternak, por seu delicioso romance “Doutor Jivago”. Até hoje, ninguém entendeu, no Ocidente, o que levou esse grupo de intelectuais a agir da maneira que agiu. Destilando seu ódio (possivelmente voltado contra si mesmo, contra sua imensa covardia face ao poder e aos poderosos) sobre um homem pacato, que amava sua pátria e que jamais, em momento algum, compreendeu a razão de ser considerado um dissidente político.

O romancista “comeu o pão que o diabo amassou” apenas por ser considerado genial além das fronteiras do território nacional. O Cremlin entendeu que o fato dele ser escolhido para o Nobel implicava, necessariamente, em alguma armadilha propagandística contra a União Soviética. Qual, não importava.

O regime desconfiava que ela existia, e pronto. Para “puxar o saco”dos vetustos senhores da cúpula do Partido Comunista, então comandados pelo campônio Nikita Kruschev, a União dos Escritores precisava se adiantar ao governo. Urgia que se punisse o companheiro, que ousara escrever uma obra capaz de despertar tamanho fascínio nos “burgueses” do Ocidente.

E o que fizeram, para realizar sua obra-prima de bajulação? Em primeiro lugar, expulsaram Pasternak da entidade, o que equivale dizer, fecharam as portas para que o romancista fosse publicado e, portanto, lido, em seu próprio país. A seguir, pediram a cassação da sua cidadania soviética, como se tivessem esse direito. E, por último, desejaram expulsar o romancista (um patriota que confessou, em pânico, em desespero, temendo perder o que mais amava: “Sair das fronteiras da minha pátria significa para mim a morte”) da própria União Soviética.

Felizmente, para o escritor, seus companheiros tiveram ao menos esse gesto de “piedade”. Deixaram-no9 continuar vivendo no país, que estava sendo tão injusto com ele, mas que ele amava tanto. O festejado Prêmio Nobel de Literatura no Ocidente era, em sua terra natal, autêntico paria. Um intelectual maldito, marcado, visado, do qual todos procuravam se afastar, como se fosse possuído de moléstia altamente contagiosa.

Mas seu romance “Doutor Jivago” sempre esteve despido de segundas intenções. É uma história viva, humana, impregnada do calor da autenticidade, escrita por alguém que tinha convicção do que escrevia. É uma obra embebida de ternura, de compaixão pelos defeitos e fraquezas humanos e principalmente de compreensão deles.

É claro que seu estilo levemente irônico serviu de pretexto para que aqueles que foram classificados por Alexander Soljenytsin de “maquiadores literários” exclamassem o seu “Eureka” russo. Para que descobrissem o que entendiam serem críticas veladas ao sistema soviético de governo e que por isso agradavam aos ocidentais.

Por causa dessa sua paranóia, privaram os cidadãos desse país, sabidamente amantes da boa literatura e entendedores de arte (os russos produziram centenas de gênios literários, em todos os tempos, isso não é segredo para ninguém), de uma obra humana, talentosa, verossímil e, sobretudo, carregada de patriotismo. Que geração infeliz foi essa que deixou que interesses mesquinhos lhe obliterassem a razão e o senso de avaliação!

Hoje, felizmente, Pasternak, que morreu em 1960, sozinho, amargurado e injustiçado pela sua gente, está sendo, finalmente, reconhecido. Afinal, graças ao trabalho de uns poucos que não se conformaram com a burrice cometida por um bando de burocratas travestidos de intelectuais, a verdade começa a ser restabelecida. E este é o único caminho para a literatura russa sobreviver. Pois, como disse com muita argúcia o dissidente Zamyatine: “...Se se esperar do escritor que ele seja um crente real e fiel, se não lhe for permitido ironizar, como Swift, ou rir de tudo, como Anatole France..., receio que a literatura russa só terá um futuro: o passado”.

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 24 de fevereiro de 1987).


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