Textos piegas
Pedro J. Bondaczuk
Os que lidam com textos, e fazem deles seu meio de vida, têm que
atentar aos mínimos detalhes naquilo que escrevem. Precisam evitar,
a todo custo, que o que colocarem no papel (ou na telinha do
computador, como queiram) enseje múltiplas interpretações,
diferentes das que quis expressar. Não se pode ser ambíguo, obscuro
e nem pedante, sob pena daquilo que o redator escreveu vir a depor
contra ele em algum tempo qualquer. Clareza, concisão e precisão
são, portanto, fundamentais em todo e qualquer texto.
Nunca sabemos quem irá ler uma crônica ou um artigo nossos, por
exemplo. Tanto pode ser um sujeito inteligente e esclarecido, quanto
algum infeliz analfabeto funcional, incapaz de assimilar, e de
entender, o que lê, embora ache que saiba fazer isso. Curiosamente,
é justamente esse tipo que mais se arroga, invariavelmente, ao papel
de crítico, tentando ridicularizar quem escreve, embora descambando
(ele sim) para o ridículo.
Quando decidi abrir mão da minha condição de comentarista político
– função que exerci, diariamente, por longos quinze anos, em
vários jornais que trabalhei – para assumir o papel de cronista,
uma das minhas preocupações sempre foi a de evitar a elaboração
(e a publicação, claro) de textos que pudessem soar “piegas”.
Quem lida com esse gênero, caracterizado pela informalidade, muitas
vezes corre esse risco, principalmente ao abordar episódios
pessoais, íntimos, que lhe são caros e que talvez não sejam para
os leitores. Se não tomar cuidado com certos temas – verdadeiras
armadilhas para os redatores – pode, de fato, descambar para a
pieguice.
Tive, há algum tempo, um incidente desagradável, a esse propósito,
no Comunique-se. Foi em relação a uma crônica que publiquei em
minha coluna das quintas-feiras, no Literário (que então era uma
seção desse prestigioso e nobre portal), em que abordei um episódio
que me marcou profundamente na infância. Tratava-se de um texto
sóbrio, leve, sem adjetivos ou tentativas banais de fazer
literatura. Nem se tratava de algo inédito ou escrito às pressas,
como somos, às vezes, obrigados a fazer, para honrar compromissos (o
que, convenhamos, é um risco imenso).
A crônica em questão já havia sido publicada em diversos jornais,
revistas e sites da internet. E a aceitação, até então, havia
sido unânime por parte dos leitores (pelo menos dos que se
manifestaram com comentários). Qual não foi minha surpresa, porém,
ao me deparar com determinada manifestação de alguém, que se dizia
“usuário do portal”, alinhavando uma série de considerações
nada lisonjeiras ao que escrevi. E não apenas em relação ao texto
(que estava na página para quem quisesse ler e avaliar), mas,
sobretudo, sobre a minha pessoa (que tenho certeza absoluta que esse
indivíduo não conhecia e ainda não conhece).
Entre tantas coisas que o tal “crítico” de algibeira escreveu, a
que mais me irritou foi ter classificado a referida crônica de
“piegas”. Houve reações imediatas (e espontâneas) em minha
defesa, como a do escritor Urariano Mota, cujo talento admiro e cuja
capacidade de análise considero insuspeita, dada sua trajetória no
jornalismo e, sobretudo, na literatura.
Meu primeiro impulso foi o de responder de forma malcriada a essa
má-criação. Isso, porém, não faz parte do meu comportamento.
Respeito, profundamente, a opinião de qualquer leitor,
principalmente aquelas que divirjam das minhas. Estou, sempre estive
e sempre estarei aberto às críticas, às quais me submeto (quando
pertinentes) e tomo como referenciais para me tornar um redator
melhor.
O tal indivíduo, porém, não estava me criticando. Estava fazendo
“chacota” com o meu texto, o que é muito diferente. Ainda assim,
decidi analisar sua crítica e tentar encontrar algo de bom, de útil
e de aproveitável nela. Fui ao dicionário para refrescar a memória
sobre o sentido exato da palavra “piegas”. Aurélio Buarque
Ferreira diz que é o indivíduo “ridiculamente sentimental”.
“Será que sou assim?!”, indaguei-me, atônito. Concluí que não.
Fiz novas consultas. Fui, por exemplo, ao Dicionário Mor da Língua
Portuguesa, do professor Cândido de Oliveira. E ele define essa
palavra assim: “piegas – pessoa embaraçada, atoleimada,
ridiculamente assustadiça, afetada”. “Meu Deus do céu,
será que sou tudo isso, sem me dar conta?!”. Tenho, é certo,
inúmeros defeitos pessoais e algumas tantas deficiências de estilo,
não nego. Mas piegas?! Não, definitivamente, não sou! E a dita
crônica também não é.
Esse incidente trouxe-me à memória outro, ocorrido há mais de 40
anos. Recebi, certa feita, este poema de uma garota (a quem amei
demais, e que, na época, era a minha namorada) que ela afirmou haver
copiado de algum lugar e que, no seu entender, cabia como uma luva à
minha pessoa:
Menino grande
“Eu gosto tanto do carinho quer ele me faz
Faz tanto bem o beijo que ele me traz
As horas passam, ligeiras, felizes
Sem a gente sentir.
Ele está ao meu lado, com o corpo cansado
Precisa dormir.
Dorme menino grande
Que eu estou perto de ti
Sonha o que bem quiseres
Que eu não sairei daqui.
Ó vento não faz barulho
Meu amor está dormindo
E o mar não bata com força
Por que ele está dormindo.
Dorme, menino grande,
Que eu estou perto de ti.
Sonha o que bem quiseres
Que eu não sairei daqui”.
Mostrei estes versos a um amigo, sem revelar a autoria, e pedi sua
opinião. Qual não foi a minha surpresa e, principalmente, minha
decepção quando ele classificou, na maior cara dura, sem ao menos
refletir no que dizia, essa jóia poética de “piegas”! Não
pensei duas vezes. Rompi, de imediato, sem mais delongas ou
explicações, a amizade. Nunca mais sequer conversei com essa
pessoa.
Afinal, não tenho nada em comum com indivíduos de mau-gosto e que
são, sobretudo, mal-informados. Estes versos, para quem não sabe
(ou ainda não identificou) são do magnífico poeta, cronista,
boêmio pernambucano (e, sobretudo, extraordinária figura humana),
Antonio Maria Araújo de Morais, que foi um dos mais inspirados e
consagrados compositores da MPB de todos os tempos. E a letra em
questão, tão estupidamente avaliada e infantilmente criticada, foi
estrondoso sucesso de público e de vendas, na voz gostosa e
acariciante de Nora Ney...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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