Cantinho da memória
Pedro J.
Bondaczuk
“A beleza está em toda parte. E
talvez em cada momento de nossas vidas”. Esta constatação foi feita por Jorge
Luís Borges, que mesmo depois de acometido de cegueira, a vislumbrava, “com os
olhos da alma”, em todo o instante e lugar. Como? Através da imaginação,
capacidade ímpar, da qual todos somos dotados, e que tende a tornar belos até
mesmo situações e lugares dos mais horrendos e deformados.
Ademais, a beleza não se
manifesta, apenas, pelo visual. Não a detectamos “só” com os olhos. Outros
sentidos nos possibilitam contato íntimo com ela. O ouvido é um deles e,
convenhamos, não o mais desprezível. Longe disso. Ouçam, por exemplo, de olhos fechados, um bom
poema, declamado por quem saiba lhe dar a devida ênfase. É um deleite! Ou se
disponham a ouvir determinadas sinfonias, ou mesmo canções populares de
reconhecida qualidade, executadas por artistas de real talento. A alma parece
flutuar fora do corpo, nesses momentos de encantamento, e não raro logramos
entrar até em estado de êxtase.
Para usufruirmos da beleza
contida (nem sempre de forma ostensiva) em todos os momentos de nossas vidas,
porém, temos que estar predispostos para o que é bom e belo. Precisamos adotar
atitudes positivas, por piores que sejam as circunstâncias e as pessoas que nos
rodeiem. Quando nos limitamos a temer as coisas más, sem coragem para
enfrentá-las e tentar modificá-las, na verdade as potencializamos em nossa
imaginação, e as tornamos maiores do que de fato são. E elas acabam por
envenenar as nossas vidas.
O antídoto para isso é buscar,
incansavelmente, a beleza que está por toda a parte, principalmente dentro de
nós, que se faz presente em cada momento do nosso cotidiano e, não raro, em
nossas recordações, guardada em algum cantinho da memória, à nossa inteira
disposição. Boas lembranças tenho aos montes e devoto profunda gratidão às
pessoas e circunstâncias que me proporcionaram tantos momentos de deleite, quer
físicos, quer (e principalmente) estéticos e, portanto, espirituais.
Uma dessas oportunidades raras,
que poucas pessoas já tiveram, foi a de conhecer, de perto, cara a cara, um dos
maiores cantores líricos de todos os tempos (para mim o maior, talvez no mesmo
patamar do mito Enrico Caruso), que foi
o tenor italiano Beniamino Gigli.
Artista consagrado, que
despertava delírio em grandes platéias do mundo todo, era, sobretudo, um homem
generoso. E adorava o Brasil. Tanto que, entre 1921 e 1951, esteve por oito
vezes em nosso país. E nessas ocasiões, além de se apresentar nos melhores
teatros de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Manaus, cantou, também, em
clubes e igrejas, notadamente da colônia italiana na capital paulista, sempre
com entrada franca. Até gravou para a posteridade duas famosas canções
brasileiras: “Mimosa” (de Leopoldo Froes) e o clássico do nosso cancioneiro,
“Casinha pequenina”.
Tive a oportunidade de ouvir,
tocar e até de receber um beijo na testa de Beniamino Gigli em sua última
passagem por São Paulo, em 1951. Eu tinha, na oportunidade, apenas oito anos de
idade. Era um garotinho franzino, loirinho, de vivos e inquietos olhos azuis,
muito tagarela, mas marcado pela vida,
ao ser acometido por uma insidiosa poliomielite dois anos antes. Minha profunda
tristeza comoveu aquele excepcional artista na ocasião.
Jamais me esqueci (e nem poderia)
da figura marcante daquele mito internacional, da sua nobre postura no palco e,
principalmente da sua belíssima e incomparável voz de tenor. Gigli interpretou,
na oportunidade, além de árias de diversas das óperas que integravam seu vasto
e eclético repertório, tradicionais canções napolitanas, como “Ave Maria”,
“Mamma”, “Solo per te”, “Santa Lucia”, “O sole mio”, “Non ti scordare di me” e,
principalmente, a inesquecível “Parlame damore Mariu” e as duas composições
brasileiras que gravaria dias depois, “Mimosa” e “Casinha Pequenina”.
Este momento de beleza e
encantamento mudou, por completo, a minha vida. Determinou, acima de tudo, o
meu gosto estético. Essa uma hora e meia de sonho e fantasia (diria, de intensa
magia) está marcada, profundamente, de forma indelével, em minha memória,
passados bem mais de meio século, como se houvesse ocorrido há pouco, há
simples minutos.
Ao recordar desse episódio tão
especial, entendo, em toda a sua plenitude, o real significado das palavras de
Jorge Luís Borges quando registrou para a posteridade as palavras com que
iniciei esta despretensiosa crônica: “A beleza está em toda a parte. E talvez
em cada momento de nossas vidas”. Para gozá-la plenamente, basta calar-se por
um momento, fechar os olhos e deixar
somente o coração falar. Experimente, querido leitor!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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