Sunday, April 30, 2017

Sem parâmetros

Pedro J. Bondaczuk

O homem precisa de referenciais para se orientar, saber onde está e o que (e até quem) é. A mente humana trabalha por comparações. Sabe, por exemplo, que o Homo Sapiens (e acho essa designação arrogante em demasia para o que de fato somos) é racional porque, comparado com os outros seres viventes (animais ou vegetais) mostra aptidões e sinais de inteligência e consciência que estes não demonstram. É o que denominamos de parâmetro (embora a definição dessa palavra não seja rigorosamente essa, mesmo que o sentido o seja).

Vivemos comparando: tamanhos, formas, distâncias, pensamentos, sentimentos, ações, comportamentos etc. Quando chegamos a uma cidade estranha, por exemplo, temos que escolher, de imediato, um ponto de referência para nos orientar. Caso contrário, ficaremos perdidos e desorientados, sem sabermos onde estamos e para onde devemos ir.

Na vida, também é assim. Desenvolvemos o conceito do bem e do mal pela comparação dos resultados de ambos. Para desorientar alguma pessoa, por maior que seja seu senso de orientação, é muito fácil. Basta alterar-lhe os parâmetros, os referenciais com os quais está habituada.

Em casos extremos, esse indivíduo chega a desconhecer, até mesmo, quem é. Morris West propõe o seguinte raciocínio, em seu romance “A Salamandra”: “Conhecem a palavra parâmetro? Muitas pessoas a usam, mas poucas lhe compreendem o sentido ou a importância. O dicionário a define como “uma quantidade constante no caso considerado, mas variável em casos diferentes”. Vamos reconhecer que essa definição pouco ou nada significa. Mas vamos supor que uma noite se vá dormir e, ao acordar na manhã seguinte, não se veja mais a torre de igreja ou a árvore que estavam sempre emolduradas pela janela. Vamos supor que se abra a porta da cozinha e se encontre, em lugar dela, um jardim de rosas. As qualidades constantes da vida teriam desaparecido. A pessoa estaria perdida e diria: ‘Não sei onde estou’. Se as mudanças continuassem de dia para dia, a pessoa acabaria uma vítima da inconstância das coisas e diria: ‘Não sei quem sou’”.

E quais são os parâmetros de conduta que as pessoas adotam, por considerar esses “referenciais” modelos de sucesso dignos de imitação? São os heróis (posto que aqui o “heroísmo” nem sempre é o exemplar, quando se coloca nesse patamar sanguinários guerreiros, peritos na “arte de matar”), santos, sábios, poetas, cantores, músicos, atores de cinema e televisão, jogadores de futebol etc. Ou seja, há ídolos para todos os gostos e fantasias, de acordo com a cabeça de cada um. E esse não é um fenômeno recente. Sempre foi assim.

Na Grécia antiga, por exemplo, guerreiros ousados, que despertaram a imaginação de multidões, foram glorificados e, posteriormente, até deificados, compondo extenso panteão de deuses com características (notadamente defeitos) típicos dos humanos. A Igreja Católica conta com uma infinidade de santos em seu hagiário, que teriam se destacado pela humildade, fé, caridade e outras tantas virtudes, raras nas pessoas comuns.

Na Idade Média, cavaleiros andantes foram postos como parâmetros, por burgueses e camponeses, que sonhavam imitar suas aventuras – na verdade, parasitas, que viviam do trabalho alheio – quer na luta pela reconquista da cidade de Jerusalém, em poder dos mouros, quer nas “justas” disputadas entre eles, para demonstrar habilidades e coragem. Era a forma que conheciam de tentar dar sentido e grandeza às suas vidas medíocres, cinzentas, sofridas e não raro miseráveis. E isso no Ocidente. No mundo muçulmano, os parâmetros eram inversos dos ocidentais. Ou seja, eram seus próprios guerreiros, envolvidos em intermináveis “jihads” (guerras santas), cujos supostos feitos e peripécias, na conquista de territórios para o Islã, eram exaltados e mitificados.

Muitos desses heróis e santos não resistiriam, porém, a uma análise mais acurada de suas vidas e decantadas façanhas. Revelar-se-iam não serem lá tão dignos da veneração, que descambava para a idolatria, de que eram alvos por parte dos tolos e dos basbaques. A maioria é fruto de histórias quase sempre inventadas, de feitos e peripécias nunca acontecidos, ou aumentados e distorcidos pela imaginação popular, e que, por isso, se transformaram, rapidamente, em lendas, que ninguém até hoje ousa contestar.

Na atualidade, os parâmetros de conduta continuam tão frágeis ou mais do que em tempos mais remotos. Foram, é verdade, um tanto modificados, mas provavelmente para pior. Contudo, na essência, são muito parecidos com os da antiguidade. Os “heróis” que despertam, atualmente, a imaginação popular (notadamente da juventude) e fazem multidões delirarem à sua simples presença, não são mais os guerreiros, como há alguns séculos (até porque, as guerras atuais não são nada “heroicas”; são, cada vez mais, tecnológicas, e infinitamente mais letais, à base de mísseis arrasadores e certeiros, disparados de quilômetros de distância dos campos de batalha, até de um continente a outro). São atletas de várias modalidades desportivas, notadamente do futebol (mas não apenas dele).

Os filósofos, poetas, historiadores etc. outrora mitificados, foram substituídos, no panteão contemporâneo, por atores e atrizes do cinema e da televisão; por cantores de rock, jazz ou qualquer outro ritmo exótico e de fácil absorção pelo público; por magérrimas e esquálidas modelos e por outras tantas “celebridades”, cuja glória, raramente, dura dez anos se tanto e que logo voltam ao ostracismo e à obscuridade de antes da fama, substituídos por outros ídolos, de igual natureza e duração.

Como se vê, são e sempre foram frágeis, fragílimos os nossos parâmetros de conduta. Nossos “ídolos”, por mais douradas que pareçam suas estampas, têm, quase todos, pés de barro. Esboroam-se à mais ligeira análise da sua conduta e dos seus feitos. Somos multidões (7,6 bilhões de pessoas), nos multiplicamos exponencialmente e caminhamos às tontas, com parcos e frágeis referenciais – que, longe de nos indicarem os caminhos mais adequados para o bem-estar e a felicidade, apenas nos despertam delirantes fantasias que se transformam, com o tempo, em inesgotáveis fontes de angústias e frustrações – rumo a um abismo sem fundo. Pode-se dizer, portanto, que, virtualmente, não temos parâmetros com os quais nos comparar, dada a mesquinhez e a fragilidade dos que são considerados, quase que consensualmente, como tal.


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