Sem parâmetros
Pedro J. Bondaczuk
O homem precisa de
referenciais para se orientar, saber onde está e o que (e até quem)
é. A mente humana trabalha por comparações. Sabe, por exemplo, que
o Homo Sapiens (e acho essa designação arrogante em demasia para o
que de fato somos) é racional porque, comparado com os outros seres
viventes (animais ou vegetais) mostra aptidões e sinais de
inteligência e consciência que estes não demonstram. É o que
denominamos de parâmetro (embora a definição dessa palavra não
seja rigorosamente essa, mesmo que o sentido o seja).
Vivemos comparando: tamanhos,
formas, distâncias, pensamentos, sentimentos, ações,
comportamentos etc. Quando chegamos a uma cidade estranha, por
exemplo, temos que escolher, de imediato, um ponto de referência
para nos orientar. Caso contrário, ficaremos perdidos e
desorientados, sem sabermos onde estamos e para onde devemos ir.
Na vida, também é assim.
Desenvolvemos o conceito do bem e do mal pela comparação dos
resultados de ambos. Para desorientar alguma pessoa, por maior que
seja seu senso de orientação, é muito fácil. Basta alterar-lhe os
parâmetros, os referenciais com os quais está habituada.
Em casos extremos, esse
indivíduo chega a desconhecer, até mesmo, quem é. Morris West
propõe o seguinte raciocínio, em seu romance “A Salamandra”:
“Conhecem a palavra parâmetro? Muitas pessoas a usam, mas poucas
lhe compreendem o sentido ou a importância. O dicionário a define
como “uma quantidade constante no caso considerado, mas variável
em casos diferentes”. Vamos reconhecer que essa definição pouco
ou nada significa. Mas vamos supor que uma noite se vá dormir e, ao
acordar na manhã seguinte, não se veja mais a torre de igreja ou a
árvore que estavam sempre emolduradas pela janela. Vamos supor que
se abra a porta da cozinha e se encontre, em lugar dela, um jardim de
rosas. As qualidades constantes da vida teriam desaparecido. A pessoa
estaria perdida e diria: ‘Não sei onde estou’. Se as mudanças
continuassem de dia para dia, a pessoa acabaria uma vítima da
inconstância das coisas e diria: ‘Não sei quem sou’”.
E quais são os parâmetros de
conduta que as pessoas adotam, por considerar esses “referenciais”
modelos de sucesso dignos de imitação? São os heróis (posto que
aqui o “heroísmo” nem sempre é o exemplar, quando se coloca
nesse patamar sanguinários guerreiros, peritos na “arte de
matar”), santos, sábios, poetas, cantores, músicos, atores de
cinema e televisão, jogadores de futebol etc. Ou seja, há ídolos
para todos os gostos e fantasias, de acordo com a cabeça de cada um.
E esse não é um fenômeno recente. Sempre foi assim.
Na Grécia antiga, por
exemplo, guerreiros ousados, que despertaram a imaginação de
multidões, foram glorificados e, posteriormente, até deificados,
compondo extenso panteão de deuses com características (notadamente
defeitos) típicos dos humanos. A Igreja Católica conta com uma
infinidade de santos em seu hagiário, que teriam se destacado pela
humildade, fé, caridade e outras tantas virtudes, raras nas pessoas
comuns.
Na Idade Média, cavaleiros
andantes foram postos como parâmetros, por burgueses e camponeses,
que sonhavam imitar suas aventuras – na verdade, parasitas, que
viviam do trabalho alheio – quer na luta pela reconquista da cidade
de Jerusalém, em poder dos mouros, quer nas “justas” disputadas
entre eles, para demonstrar habilidades e coragem. Era a forma que
conheciam de tentar dar sentido e grandeza às suas vidas medíocres,
cinzentas, sofridas e não raro miseráveis. E isso no Ocidente. No
mundo muçulmano, os parâmetros eram inversos dos ocidentais. Ou
seja, eram seus próprios guerreiros, envolvidos em intermináveis
“jihads” (guerras santas), cujos supostos feitos e peripécias,
na conquista de territórios para o Islã, eram exaltados e
mitificados.
Muitos desses heróis e santos
não resistiriam, porém, a uma análise mais acurada de suas vidas e
decantadas façanhas. Revelar-se-iam não serem lá tão dignos da
veneração, que descambava para a idolatria, de que eram alvos por
parte dos tolos e dos basbaques. A maioria é fruto de histórias
quase sempre inventadas, de feitos e peripécias nunca acontecidos,
ou aumentados e distorcidos pela imaginação popular, e que, por
isso, se transformaram, rapidamente, em lendas, que ninguém até
hoje ousa contestar.
Na atualidade, os parâmetros
de conduta continuam tão frágeis ou mais do que em tempos mais
remotos. Foram, é verdade, um tanto modificados, mas provavelmente
para pior. Contudo, na essência, são muito parecidos com os da
antiguidade. Os “heróis” que despertam, atualmente, a imaginação
popular (notadamente da juventude) e fazem multidões delirarem à
sua simples presença, não são mais os guerreiros, como há alguns
séculos (até porque, as guerras atuais não são nada “heroicas”;
são, cada vez mais, tecnológicas, e infinitamente mais letais, à
base de mísseis arrasadores e certeiros, disparados de quilômetros
de distância dos campos de batalha, até de um continente a outro).
São atletas de várias modalidades desportivas, notadamente do
futebol (mas não apenas dele).
Os filósofos, poetas,
historiadores etc. outrora mitificados, foram substituídos, no
panteão contemporâneo, por atores e atrizes do cinema e da
televisão; por cantores de rock, jazz ou qualquer outro ritmo
exótico e de fácil absorção pelo público; por magérrimas e
esquálidas modelos e por outras tantas “celebridades”, cuja
glória, raramente, dura dez anos se tanto e que logo voltam ao
ostracismo e à obscuridade de antes da fama, substituídos por
outros ídolos, de igual natureza e duração.
Como se vê, são e sempre
foram frágeis, fragílimos os nossos parâmetros de conduta. Nossos
“ídolos”, por mais douradas que pareçam suas estampas, têm,
quase todos, pés de barro. Esboroam-se à mais ligeira análise da
sua conduta e dos seus feitos. Somos multidões (7,6 bilhões de
pessoas), nos multiplicamos exponencialmente e caminhamos às tontas,
com parcos e frágeis referenciais – que, longe de nos indicarem os
caminhos mais adequados para o bem-estar e a felicidade, apenas nos
despertam delirantes fantasias que se transformam, com o tempo, em
inesgotáveis fontes de angústias e frustrações – rumo a um
abismo sem fundo. Pode-se dizer, portanto, que, virtualmente, não
temos parâmetros com os quais nos comparar, dada a mesquinhez e a
fragilidade dos que são considerados, quase que consensualmente,
como tal.
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