“Um campo, um rio e um
lago...”
Pedro
J. Bondaczuk
A infância, quando
feliz, permeia toda a vida de qualquer pessoa e muito mais a dos poetas, que a
tornam, ostensiva ou veladamente (não raro até de maneira inconsciente), tema
preferencial de sua poesia. É a época da energia e da disposição. É a fase das
descobertas, notadamente da beleza, que se impregna no espírito e lá permanece
indefinidamente. É o período de vida dos sonhos, esperanças e desejos, posto
que na ocasião vagos, para o qual se pretenderia (caso fosse possível, claro)
retornar, Principalmente quando os anos posteriores a uma infância feliz – a
adolescência, a maturidade e a velhice –
são amargos, ásperos e decepcionantes. O curioso é que, quando crianças,
temos pressa de crescer, de amadurecer, de nos tornarmos adultos. Só muitos
anos depois percebemos o tamanho da perda com esse amadurecimento e posterior
envelhecimento.
A austríaca Ingeborg
Bachmann registrou o seguinte, a esse propósito, em seu diário, na data de 23
de março de 1971: “Sem que o escritor tenha consciência, os anos de infância
são seu verdadeiro capital. O que vem depois, e que até pode ser considerado
muito mais interessante, em nada acrescenta. Apenas anos mais tarde é que se
começa a entender o que se viu no primeiro olhar”. Essa mulher brilhante,
escritora, filósofa e, sobretudo poetisa, tinha todos os motivos imagináveis
para valorizar seus tempos de menina, vividos em uma pacata e bucólica
cidadezinha do interior austríaco, onde nasceu e viveu seus primeiros treze anos.
Ingeborg Bachmann foi
feliz (felicíssima) na sua arte, no caso a Literatura, caso se considere
“felicidade” o sucesso na carreira que ela escolheu. Porém, se forem
considerados seus relacionamentos, sobretudo os amorosos, as coisas não foram
tão felizes assim. Pelo contrário. Nesse aspecto, a poetisa frustrou-se, em
todas as relações afetivas nas quais “entrou de cabeça” (foram principalmente
três) de tal sorte que se desencantou da
própria vida. E, possivelmente, tenha até dado cabo dela (ainda se discute, até
hoje, se sua morte foi causada por um acidente ou se ela se suicidou. Tudo leva
a crer que esta última hipótese seja a correta). Daí tamanho valor que ela deu
aos despreocupados e belos anos de infância.
Ingeborg Bachmann
nasceu na cidadezinha austríaca de Klagenfurt, na fronteira com a Itália e a
atual Eslovênia, em 25 de junho de 1926. Passou uma infância e início da
adolescência, ou seja, até os 13 anos de idade, curtindo a natureza, sobretudo,
como enfatizou anos mais tarde em inúmeros poemas, “um campo, um rio e um
lago”. Como não ser artista (no seu caso, poetisa) crescendo em um cenário
encantador, de contos de fadas, como aquele? Não se estranha, pois, que
houvesse desenvolvido, de forma tão aguda, a sensibilidade poética que a
caracterizou. Embora tenha escrito um romance, “Malina”, de relativo sucesso e
deixado inacabados outros dois – “Tipos de morte” e “O caso Franza” – foi na
poesia que se destacou. Estranhamente, publicou poucos livros do gênero. O mais
citado deles é “O tempo prorrogado”, que é muito bom.
Além de poemas,
Ingeborg escreveu contos e ensaios, publicados em jornais e revistas. E
principalmente, novelas para rádio (foi, durante algum tempo, roteirista e
editora da emissora “Rot-Weiss-Rot” de Viena). Por fim, redigiu um livreto para
a ópera “O príncipe de Homburg”, de Hans
Werner Hengel. Enfim, foi bem sucedida na Literatura. Mas na vida... Excluídos
alguns “namoricos”, sem grande importância, Ingeborg teve três ligações
amorosas um tanto mais sérias, todas, por razões diferentes, infelizes.
A primeira foi com o
poeta francês, de ascendência judia, Paul Celan, a quem conheceu quando da
passagem deste por Viena, em 1948. Tempos depois, voltaram a se encontrar,
dessa vez no apartamento de outro expoente do surrealismo, Edgar Jené, em
Paris. Foi a grande paixão da sua vida. A propósito desse amor, ela
confidenciou, certa feita, em carta ao compositor Hans Hengel: “Amava-o mais do
que minha vida, mas por razões diabólicas”. E por que esse relacionamento não
deu certo? Provavelmente, por incompatibilidade de temperamentos. Ou... sabe-se
lá!
Ambos chegaram a morar
juntos, em Paris, mas por apenas dois meses. Contudo, nunca se entenderam de
fato e optaram por se separar. Mas não definitivamente. Deram continuidade a um
estranho “namoro”, apenas por cartas, que durou um bom tempo. Celan dedicou-lhe
muitas de suas poesias e vice-versa. Isso mostra que os dois poetas sempre se
amaram. Mas... eram incompatíveis um para o outro.
O relacionamento
seguinte foi mais estranho ainda. Em 1952, Ingeborg conheceu o jovem compositor
Hans Werner Henzel, com o qual partiu para a Itália. Ambos permaneceram juntos
por quatro longos anos. Chegaram, mesmo, a cogitar em casamento. Mas... havia
um obstáculo intransponível para o matrimônio: o músico era homossexual
assumido. Tinha, em Ingeborg, mera “amiguinha” e confidente e nada além disso.
Nunca cogitou em se unir a nenhuma mulher, não, pelo menos, no sentido sexual.
Muito menos com a poetisa, com a qual viveu apenas como se vive com uma irmã.
Finalmente, o terceiro
relacionamento dela foi o definitivo. Não no sentido dos romances, contos e
novelas usuais, no do “happy end” e do “viveram felizes para sempre”, mas no da
destruição afetiva e finalmente física de Ingeborg. Essa ligação foi com outro escritor,
Max Frisch, o qual conheceu em Frankfurt, em 1958. O caso permaneceu numa
espécie de “chove não molha” por dois anos, até que em 1960 decidiram viver
juntos. Mas não tão juntos assim. Os dois viajavam, separados, frequentemente e
eram longos os períodos de separação. Eles variavam de local de residência,
alternando ora sua casa em Frankfurt, ora algum hotel de Roma. Mas... de novo
não havia compatibilidade entre o casal. As brigas eram freqüentes e, cinco
anos após iniciarem o relacionamento, concluíram que a união não daria certo
mesmo. E separaram-se.
Aí, porém, veio o
grande golpe para Ingeborg. Frisch publicou um livro, “Meu nome é Gantenhein”,
de relativo sucesso, em que arrasou a imagem da ex-companheira. Culpou-a,
sobretudo, e de maneira rancorosa, maldosa e mentirosa, por tudo o que de ruim
aconteceu nesse longo e tumultuado relacionamento. O golpe atingiu fundo a
poetisa. Tanto que, a partir de então, tornaram-se cada vez mais freqüentes os
internamentos de Ingeborg em hospitais e até em manicômios. Ela entregou-se, de
vez, ao alcoolismo, misturando a bebida com doses exageradas de calmantes. Até
que, em 26 de setembro de 1973, veio o desfecho trágico.
A poetisa foi
resgatada, praticamente moribunda, mas ainda com vida, do banheiro em chamas de
seu apartamento em um hotel de Roma. Estava com horríveis queimaduras em cerca
de 90% do corpo. Ademais, apresentava inequívocos sinais de embriaguez. Tudo
levava a crer que ela havia posto fogo, propositalmente, no banheiro, com o
intuito de se matar. Ainda permaneceu
hospitalizada por vinte dias, sem jamais recuperar a consciência. Morreu em 17
de outubro de 1973, chocando seus milhões de admiradores.
Ingeborg Bachmann,
porém, embora apenas depois de morta, pôde “regressar” ao cenário de sua infância,
que ela tanto amava e que tanto exaltou em seus poemas, onde seus restos
mortais repousam. Ela jamais esqueceu o esplendor da natureza da sua terra
natal, depois de viajar por tantos e tantos lugares da Europa. Foi sepultada em
Klagenfurt, perto das três referências que mais a impressionaram quando menina:
“um campo, um rio e um lago”. Foi, reitero, felicíssima na Literatura, sendo
considerada uma das melhores escritoras em língua alemã do século XX. Todavia,
nunca teve a mesma sorte no amor, que conheceu, é verdade, mas de cujas
delícias não pôde gozar em decorrência de circunstâncias adversas.
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