Wednesday, March 26, 2014

“Um campo, um rio e um lago...”

Pedro J. Bondaczuk

A infância, quando feliz, permeia toda a vida de qualquer pessoa e muito mais a dos poetas, que a tornam, ostensiva ou veladamente (não raro até de maneira inconsciente), tema preferencial de sua poesia. É a época da energia e da disposição. É a fase das descobertas, notadamente da beleza, que se impregna no espírito e lá permanece indefinidamente. É o período de vida dos sonhos, esperanças e desejos, posto que na ocasião vagos, para o qual se pretenderia (caso fosse possível, claro) retornar, Principalmente quando os anos posteriores a uma infância feliz – a adolescência, a maturidade e a velhice –  são amargos, ásperos e decepcionantes. O curioso é que, quando crianças, temos pressa de crescer, de amadurecer, de nos tornarmos adultos. Só muitos anos depois percebemos o tamanho da perda com esse amadurecimento e posterior envelhecimento.

A austríaca Ingeborg Bachmann registrou o seguinte, a esse propósito, em seu diário, na data de 23 de março de 1971: “Sem que o escritor tenha consciência, os anos de infância são seu verdadeiro capital. O que vem depois, e que até pode ser considerado muito mais interessante, em nada acrescenta. Apenas anos mais tarde é que se começa a entender o que se viu no primeiro olhar”. Essa mulher brilhante, escritora, filósofa e, sobretudo poetisa, tinha todos os motivos imagináveis para valorizar seus tempos de menina, vividos em uma pacata e bucólica cidadezinha do interior austríaco, onde nasceu e viveu seus primeiros treze anos.

Ingeborg Bachmann foi feliz (felicíssima) na sua arte, no caso a Literatura, caso se considere “felicidade” o sucesso na carreira que ela escolheu. Porém, se forem considerados seus relacionamentos, sobretudo os amorosos, as coisas não foram tão felizes assim. Pelo contrário. Nesse aspecto, a poetisa frustrou-se, em todas as relações afetivas nas quais “entrou de cabeça” (foram principalmente três)  de tal sorte que se desencantou da própria vida. E, possivelmente, tenha até dado cabo dela (ainda se discute, até hoje, se sua morte foi causada por um acidente ou se ela se suicidou. Tudo leva a crer que esta última hipótese seja a correta). Daí tamanho valor que ela deu aos despreocupados e belos anos de infância.

Ingeborg Bachmann nasceu na cidadezinha austríaca de Klagenfurt, na fronteira com a Itália e a atual Eslovênia, em 25 de junho de 1926. Passou uma infância e início da adolescência, ou seja, até os 13 anos de idade, curtindo a natureza, sobretudo, como enfatizou anos mais tarde em inúmeros poemas, “um campo, um rio e um lago”. Como não ser artista (no seu caso, poetisa) crescendo em um cenário encantador, de contos de fadas, como aquele? Não se estranha, pois, que houvesse desenvolvido, de forma tão aguda, a sensibilidade poética que a caracterizou. Embora tenha escrito um romance, “Malina”, de relativo sucesso e deixado inacabados outros dois – “Tipos de morte” e “O caso Franza” – foi na poesia que se destacou. Estranhamente, publicou poucos livros do gênero. O mais citado deles é “O tempo prorrogado”, que é muito bom.

Além de poemas, Ingeborg escreveu contos e ensaios, publicados em jornais e revistas. E principalmente, novelas para rádio (foi, durante algum tempo, roteirista e editora da emissora “Rot-Weiss-Rot” de Viena). Por fim, redigiu um livreto para a ópera  “O príncipe de Homburg”, de Hans Werner Hengel. Enfim, foi bem sucedida na Literatura. Mas na vida... Excluídos alguns “namoricos”, sem grande importância, Ingeborg teve três ligações amorosas um tanto mais sérias, todas, por razões diferentes, infelizes.

A primeira foi com o poeta francês, de ascendência judia, Paul Celan, a quem conheceu quando da passagem deste por Viena, em 1948. Tempos depois, voltaram a se encontrar, dessa vez no apartamento de outro expoente do surrealismo, Edgar Jené, em Paris. Foi a grande paixão da sua vida. A propósito desse amor, ela confidenciou, certa feita, em carta ao compositor Hans Hengel: “Amava-o mais do que minha vida, mas por razões diabólicas”. E por que esse relacionamento não deu certo? Provavelmente, por incompatibilidade de temperamentos. Ou... sabe-se lá!

Ambos chegaram a morar juntos, em Paris, mas por apenas dois meses. Contudo, nunca se entenderam de fato e optaram por se separar. Mas não definitivamente. Deram continuidade a um estranho “namoro”, apenas por cartas, que durou um bom tempo. Celan dedicou-lhe muitas de suas poesias e vice-versa. Isso mostra que os dois poetas sempre se amaram. Mas... eram incompatíveis um para o outro.

  
O relacionamento seguinte foi mais estranho ainda. Em 1952, Ingeborg conheceu o jovem compositor Hans Werner Henzel, com o qual partiu para a Itália. Ambos permaneceram juntos por quatro longos anos. Chegaram, mesmo, a cogitar em casamento. Mas... havia um obstáculo intransponível para o matrimônio: o músico era homossexual assumido. Tinha, em Ingeborg, mera “amiguinha” e confidente e nada além disso. Nunca cogitou em se unir a nenhuma mulher, não, pelo menos, no sentido sexual. Muito menos com a poetisa, com a qual viveu apenas como se vive com uma irmã.

Finalmente, o terceiro relacionamento dela foi o definitivo. Não no sentido dos romances, contos e novelas usuais, no do “happy end” e do “viveram felizes para sempre”, mas no da destruição afetiva e finalmente física de Ingeborg. Essa ligação foi com outro escritor, Max Frisch, o qual conheceu em Frankfurt, em 1958. O caso permaneceu numa espécie de “chove não molha” por dois anos, até que em 1960 decidiram viver juntos. Mas não tão juntos assim. Os dois viajavam, separados, frequentemente e eram longos os períodos de separação. Eles variavam de local de residência, alternando ora sua casa em Frankfurt, ora algum hotel de Roma. Mas... de novo não havia compatibilidade entre o casal. As brigas eram freqüentes e, cinco anos após iniciarem o relacionamento, concluíram que a união não daria certo mesmo. E separaram-se.

Aí, porém, veio o grande golpe para Ingeborg. Frisch publicou um livro, “Meu nome é Gantenhein”, de relativo sucesso, em que arrasou a imagem da ex-companheira. Culpou-a, sobretudo, e de maneira rancorosa, maldosa e mentirosa, por tudo o que de ruim aconteceu nesse longo e tumultuado relacionamento. O golpe atingiu fundo a poetisa. Tanto que, a partir de então, tornaram-se cada vez mais freqüentes os internamentos de Ingeborg em hospitais e até em manicômios. Ela entregou-se, de vez, ao alcoolismo, misturando a bebida com doses exageradas de calmantes. Até que, em 26 de setembro de 1973, veio o desfecho trágico.

A poetisa foi resgatada, praticamente moribunda, mas ainda com vida, do banheiro em chamas de seu apartamento em um hotel de Roma. Estava com horríveis queimaduras em cerca de 90% do corpo. Ademais, apresentava inequívocos sinais de embriaguez. Tudo levava a crer que ela havia posto fogo, propositalmente, no banheiro, com o intuito de se matar.  Ainda permaneceu hospitalizada por vinte dias, sem jamais recuperar a consciência. Morreu em 17 de outubro de 1973, chocando seus milhões de admiradores.

Ingeborg Bachmann, porém, embora apenas depois de morta, pôde “regressar” ao cenário de sua infância, que ela tanto amava e que tanto exaltou em seus poemas, onde seus restos mortais repousam. Ela jamais esqueceu o esplendor da natureza da sua terra natal, depois de viajar por tantos e tantos lugares da Europa. Foi sepultada em Klagenfurt, perto das três referências que mais a impressionaram quando menina: “um campo, um rio e um lago”. Foi, reitero, felicíssima na Literatura, sendo considerada uma das melhores escritoras em língua alemã do século XX. Todavia, nunca teve a mesma sorte no amor, que conheceu, é verdade, mas de cujas delícias não pôde gozar em decorrência de circunstâncias adversas.


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