Sunday, March 09, 2014

Aposta que confirmou as expectativas

Pedro J. Bondaczuk

A vigésima primeira (por ordem de publicação) contista presente na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que tomei como referência para esta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – é Sônia Coutinho. Trata-se, apenas, da segunda mulher a ser incluída nessa preciosa coletânea. Outra peculiaridade dela é o fato de ser uma das “quatro” apostas dos organizadores dessa preciosa publicação, porquanto, como as outras três, não passava de mera “promessa” na ocasião em que o livro foi editado. E, com uma margem de acerto admirável, absoluta, rara, de 100%: todos os quatro “vingaram” e se consagraram nas letras nacionais. Isso é que é competência em “garimpar” talentos! Os outros três “novatos”, que posteriormente se consagraram, foram David Salles, João Ubaldo Ribeiro e Noênio Spínola. O quarteto havia publicado, na ocasião, um livro conjunto de contos, “Reunião”, editado pela Universidade da Bahia em 1961.

Sônia Coutinho faleceu, recentemente, no Rio de Janeiro, aos 74 anos de idade. Sua morte ocorreu alguns dias antes de eu empreender esta série de estudos, em 24 de agosto de 2013. Foi, óbvio, perda irreparável para as letras nacionais. Mas, na ocasião em que “Histórias da Bahia” foi lançada, ela contava com apenas 24 anos de idade (nasceu em 1939, na cidade de Itabuna). Sônia, desde cedo, conviveu no mundo literário. Seu pai, Nathan Coutinho, foi conhecido poeta simbolista e também político, eleito em várias ocasiões como deputado estadual na Bahia, tendo presidido, inclusive, a Assembleia Legislativa local. Mas foi em Salvador, para onde a família se mudou em 1950, quando a futura escritora era apenas uma garotinha de onze anos de idade, que ela descobriu sua vocação para as letras. E que vocação!

Na capital baiana, Sônia Coutinho enamorou-se e casou-se com uma pessoa do meio, o escritor e jornalista Florisvaldo Mattos, que trabalhava, então, no “Jornal da Bahia”. Foi ele que a levou para as reuniões do grupo “Mapa”, formado por uma brilhante e memorável geração de intelectuais modernistas baianos. Ali conheceu, entre outros, o futuro e polêmico cineasta Glauber Rocha, então companheiro de redação de seu marido. O primeiro livro “solo” que ela publicou foi, de cara, um romance. Foi “O herói inútil”, lançado em 1964, pela Editora Macunaíma.

A essa altura da sua vida, chegou à conclusão de que, para se tornar uma escritora conhecida nacionalmente, para ter seu talento literário plenamente reconhecido pela crítica e pelo público, tinha que ir para um centro cultural que lhe desse “visibilidade”. Planejava mudar-se para o Rio de Janeiro, mas o marido opunha-se à mudança. Não teve dúvidas: divorciou-se de Florisvaldo e fixou residência na Cidade Maravilhosa. Ali, como tantos outros conterrâneos fizeram, antes ou depois dela, abraçou o jornalismo. Trabalhou na agência de notícias britânica Reuters e nessa verdadeira potência jornalística, que é o jornal “O Globo”. E o sucesso literário que obteve (na verdade, a consagração), provou que estava certa quando trocou o casamento pela carreira.

Foi morando no Rio, por exemplo, que conquistou dois Prêmios Jabuti, em 1979 e 1999, respectivamente com os livros “Os venenos de Lucrécia” e “Os seios de Pandora”. E mais, foi na Cidade Maravilhosa que conquistou o Prêmio Clarice Lispector, de 2006, com a obra “Ovelha negra e amiga loura”.  Foi, como enfatizou um de seus necrológios, “sentada na cadeira de balanço, entre olhares vazios para o Corcovado e a Lagoa Rodrigo de Freitas e rabiscos de pensamentos num caderno”, que “Sônia Coutinho tramou muitas de suas histórias”. E que histórias! Tão boas, que uma delas foi incluída no livro publicado no ano 2000, “Os cem melhores contos brasileiros do século”, ao lado de “monstros” sagrados, como Machado de Assis, Moacyr Scliar e 98 outros fantásticos ficcionistas.

Apesar de ter conquistado a consagração no Rio de Janeiro, Sônia Coutinho fez questão de que sua “morada final” fosse a capital do seu Estado de origem. Deu instruções à filha, a psicóloga Elsa de Mattos, para que jogasse suas cinzas (seu corpo foi cremado) nas águas da Baía de Todos os Santos. Apenas para que não passe batido, cito mais alguns livros dessa notável ficcionista, como “Uma certa felicidade”, “Mil olhos de uma rosa”, “O caso Alice” e “O jogo de Ifá”. Várias de suas obras foram publicadas nos Estados Unidos, na Alemanha e na França.        

Trago, para conhecimento do leitor, o trecho final do conto “Sábado de encontro”, de Sônia Coutinho, publicado em “Histórias da Bahia”, provavelmente extraído do livro “Reunião” (embora não possa garantir que tenha sido dessa fonte).

“ (...)  Terminam de beber o chope, tremem de frio sob o vento soprando mais forte, ele diz vamos embora e pede a conta, autoritário e imponente, tentando refazer a fachada solene de um homem. Marina assoa o nariz ligeiramente tonta, pensa miserável e arrependida – se mamãe soubesse era capaz de morrer de desgosto – encolhida definitivamente até o seu verdadeiro tamanho.

Foi a última em que eu caí, ela pensa, nunca mais, nunca mais, ouve toda essa gente falando e se agitando em torno deles. Felizmente sentamos numa mesa longe da luz. José imagina, cada vez mais sólido, sua pequena consciência de pedra reconstituindo-se exata. Marina soluça covarde, a breve sensação de poder se sentir um indivíduo, um personagem, se esvaiu rapidamente. Baba escorrendo da boca, do nariz, limpa com o lenço, algumas pessoas olham.

Ele espera impaciente a volta do garçom, toda essa gente olhando e ela dá espetáculo, graças a Deus não tem nenhum conhecido (imagine se aparece meu chefe de seção na repartição, ou o Dr. Pereira, que mora na esquina da rua, tem um automóvel novo e convidou para o aniversário da filha, ele considera, indignado com a possibilidade), preciso sair logo antes que apareça. Bate o pé no ritmo da música, depressa, diz pela primeira vez, superior: não faça isso, não chore. Depois de amanhã, na repartição: então, José, como se foi de fim de semana? E ele sorrirá misteriosamente, juntando os ofícios e as atas. Quem diria, quem diria, vivendo e aprendendo, ele pensa, refeito e judicioso, olha para ela em pequenas descobertas, em alguma parte de seu cérebro uma vozinha soprando: meio velha, mas passavelmente aproveitável, até que eu tive muita sorte em descobrir agora. Diria para a pergunta dos colegas de repartição – vivendo e aprendendo, meus caros.

Paga a conta e segura Marina pelo braço, levantam sob o vento, o vento cada vez mais forte, vem de muito longe – talvez de sombrios picos gelados, descendo aos vales, por sobre o largo espaço do mar alto – mas ela se encolhe humilde ao seu definitivo tamanho, amanhã como é que vai ser, nunca mais, nunca mais, ela se encolhe arrependida e cheia de um bom senso amargamente tardio.

Levantam e caminham para a saída, algumas pessoas espiam curiosas sua cara de choro e nariz sujo, caminham cuidadosos anti-herois pela rua repleta, seus passos são certos de fixo itinerário. Ela não precisa olhar José para saber o que vai acontecer em seguida – refeitos e inapelavelmente resignados caminham, prosseguem entre as filas enormes e os grandes agrupamentos que se espalham pelos passeios e calçadas.

Cuidadosos e encolhidos continuam, entre a gente simétrica que fala e se agita, discretamente coletiva, ignorando o frio vento misterioso que desabrocha leve e alto sobre a cidade acesa de luzes”.


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