Aposta que confirmou as
expectativas
Pedro
J. Bondaczuk
A vigésima primeira
(por ordem de publicação) contista presente na antologia “Histórias da Bahia”
(Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que tomei como referência para esta série
de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – é Sônia Coutinho. Trata-se,
apenas, da segunda mulher a ser incluída nessa preciosa coletânea. Outra
peculiaridade dela é o fato de ser uma das “quatro” apostas dos organizadores
dessa preciosa publicação, porquanto, como as outras três, não passava de mera
“promessa” na ocasião em que o livro foi editado. E, com uma margem de acerto
admirável, absoluta, rara, de 100%: todos os quatro “vingaram” e se consagraram
nas letras nacionais. Isso é que é competência em “garimpar” talentos! Os
outros três “novatos”, que posteriormente se consagraram, foram David Salles,
João Ubaldo Ribeiro e Noênio Spínola. O quarteto havia publicado, na ocasião,
um livro conjunto de contos, “Reunião”, editado pela Universidade da Bahia em
1961.
Sônia Coutinho faleceu,
recentemente, no Rio de Janeiro, aos 74 anos de idade. Sua morte ocorreu alguns
dias antes de eu empreender esta série de estudos, em 24 de agosto de 2013.
Foi, óbvio, perda irreparável para as letras nacionais. Mas, na ocasião em que
“Histórias da Bahia” foi lançada, ela contava com apenas 24 anos de idade
(nasceu em 1939, na cidade de Itabuna). Sônia, desde cedo, conviveu no mundo
literário. Seu pai, Nathan Coutinho, foi conhecido poeta simbolista e também
político, eleito em várias ocasiões como deputado estadual na Bahia, tendo
presidido, inclusive, a Assembleia Legislativa local. Mas foi em Salvador, para
onde a família se mudou em 1950, quando a futura escritora era apenas uma
garotinha de onze anos de idade, que ela descobriu sua vocação para as letras.
E que vocação!
Na capital baiana,
Sônia Coutinho enamorou-se e casou-se com uma pessoa do meio, o escritor e
jornalista Florisvaldo Mattos, que trabalhava, então, no “Jornal da Bahia”. Foi
ele que a levou para as reuniões do grupo “Mapa”, formado por uma brilhante e
memorável geração de intelectuais modernistas baianos. Ali conheceu, entre
outros, o futuro e polêmico cineasta Glauber Rocha, então companheiro de
redação de seu marido. O primeiro livro “solo” que ela publicou foi, de cara,
um romance. Foi “O herói inútil”, lançado em 1964, pela Editora Macunaíma.
A essa altura da sua
vida, chegou à conclusão de que, para se tornar uma escritora conhecida
nacionalmente, para ter seu talento literário plenamente reconhecido pela
crítica e pelo público, tinha que ir para um centro cultural que lhe desse
“visibilidade”. Planejava mudar-se para o Rio de Janeiro, mas o marido
opunha-se à mudança. Não teve dúvidas: divorciou-se de Florisvaldo e fixou
residência na Cidade Maravilhosa. Ali, como tantos outros conterrâneos fizeram,
antes ou depois dela, abraçou o jornalismo. Trabalhou na agência de notícias
britânica Reuters e nessa verdadeira potência jornalística, que é o jornal “O
Globo”. E o sucesso literário que obteve (na verdade, a consagração), provou
que estava certa quando trocou o casamento pela carreira.
Foi morando no Rio, por
exemplo, que conquistou dois Prêmios Jabuti, em 1979 e 1999, respectivamente
com os livros “Os venenos de Lucrécia” e “Os seios de Pandora”. E mais, foi na
Cidade Maravilhosa que conquistou o Prêmio Clarice Lispector, de 2006, com a
obra “Ovelha negra e amiga loura”. Foi,
como enfatizou um de seus necrológios, “sentada na cadeira de balanço, entre
olhares vazios para o Corcovado e a Lagoa Rodrigo de Freitas e rabiscos de pensamentos
num caderno”, que “Sônia Coutinho tramou muitas de suas histórias”. E que
histórias! Tão boas, que uma delas foi incluída no livro publicado no ano 2000,
“Os cem melhores contos brasileiros do século”, ao lado de “monstros” sagrados,
como Machado de Assis, Moacyr Scliar e 98 outros fantásticos ficcionistas.
Apesar de ter
conquistado a consagração no Rio de Janeiro, Sônia Coutinho fez questão de que
sua “morada final” fosse a capital do seu Estado de origem. Deu instruções à
filha, a psicóloga Elsa de Mattos, para que jogasse suas cinzas (seu corpo foi
cremado) nas águas da Baía de Todos os Santos. Apenas para que não passe
batido, cito mais alguns livros dessa notável ficcionista, como “Uma certa
felicidade”, “Mil olhos de uma rosa”, “O caso Alice” e “O jogo de Ifá”. Várias
de suas obras foram publicadas nos Estados Unidos, na Alemanha e na
França.
Trago, para
conhecimento do leitor, o trecho final do conto “Sábado de encontro”, de Sônia
Coutinho, publicado em “Histórias da Bahia”, provavelmente extraído do livro
“Reunião” (embora não possa garantir que tenha sido dessa fonte).
“
(...) Terminam de beber o chope, tremem
de frio sob o vento soprando mais forte, ele diz vamos embora e pede a conta,
autoritário e imponente, tentando refazer a fachada solene de um homem. Marina
assoa o nariz ligeiramente tonta, pensa miserável e arrependida – se mamãe
soubesse era capaz de morrer de desgosto – encolhida definitivamente até o seu
verdadeiro tamanho.
Foi
a última em que eu caí, ela pensa, nunca mais, nunca mais, ouve toda essa gente
falando e se agitando em torno deles. Felizmente sentamos numa mesa longe da
luz. José imagina, cada vez mais sólido, sua pequena consciência de pedra
reconstituindo-se exata. Marina soluça covarde, a breve sensação de poder se
sentir um indivíduo, um personagem, se esvaiu rapidamente. Baba escorrendo da
boca, do nariz, limpa com o lenço, algumas pessoas olham.
Ele
espera impaciente a volta do garçom, toda essa gente olhando e ela dá
espetáculo, graças a Deus não tem nenhum conhecido (imagine se aparece meu
chefe de seção na repartição, ou o Dr. Pereira, que mora na esquina da rua, tem
um automóvel novo e convidou para o aniversário da filha, ele considera,
indignado com a possibilidade), preciso sair logo antes que apareça. Bate o pé
no ritmo da música, depressa, diz pela primeira vez, superior: não faça isso,
não chore. Depois de amanhã, na repartição: então, José, como se foi de fim de
semana? E ele sorrirá misteriosamente, juntando os ofícios e as atas. Quem
diria, quem diria, vivendo e aprendendo, ele pensa, refeito e judicioso, olha
para ela em pequenas descobertas, em alguma parte de seu cérebro uma vozinha
soprando: meio velha, mas passavelmente aproveitável, até que eu tive muita
sorte em descobrir agora. Diria para a pergunta dos colegas de repartição –
vivendo e aprendendo, meus caros.
Paga
a conta e segura Marina pelo braço, levantam sob o vento, o vento cada vez mais
forte, vem de muito longe – talvez de sombrios picos gelados, descendo aos
vales, por sobre o largo espaço do mar alto – mas ela se encolhe humilde ao seu
definitivo tamanho, amanhã como é que vai ser, nunca mais, nunca mais, ela se
encolhe arrependida e cheia de um bom senso amargamente tardio.
Levantam
e caminham para a saída, algumas pessoas espiam curiosas sua cara de choro e
nariz sujo, caminham cuidadosos anti-herois pela rua repleta, seus passos são
certos de fixo itinerário. Ela não precisa olhar José para saber o que vai
acontecer em seguida – refeitos e inapelavelmente resignados caminham,
prosseguem entre as filas enormes e os grandes agrupamentos que se espalham
pelos passeios e calçadas.
Cuidadosos
e encolhidos continuam, entre a gente simétrica que fala e se agita,
discretamente coletiva, ignorando o frio vento misterioso que desabrocha leve e
alto sobre a cidade acesa de luzes”.
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