Saturday, March 22, 2014

Resgate da história familiar

Pedro J. Bondaczuk

O escritor norte-americano Ernest Hemmingway, nascido em 21 de junho de 1898, em Oak Park, no Estado de Illinois, conhecido no mundo todo não apenas pelos livros de sucesso que publicou – muitos dos quais serviram de roteiro para filmes campeões de bilheteria de Hollywood, como “O Velho e o mar”, “Por quem os sinos dobram” e “Adeus às armas”, entre outros –, mas pelas inúmeras aventuras que viveu, ficaria frustrado ao saber (se estivesse vivo) que por muito tempo foi um quase desconhecido da família, pelo menos da terceira geração dela, os seus netos, sobrinhos, etc.

Isso, a julgar pela confissão, feita há dezoito anos (em 1984), pela neta Margaux Hemmingway, também uma celebridade, só que em outra arte: o cinema. A atriz justificou o fato de não conhecer quase nada da trajetória artística e da vida desse controvertido ancestral, afirmando, na ocasião, que quando o avô se matou, em Ketchum (estado de Idaho), com um tiro de fuzil de caça, em 2 de julho de 1961, aos 61 anos, ela era muito pequena. Tinha somente seis anos de idade e não se recordava de quase nada do ilustríssimo parente. Aliás, abrindo um parêntese, o pai do romancista, um médico de pouco prestígio, também cometeu suicídio, em 1928, quando o filho tinha trinta anos de idade. E a neta atentou contra a própria vida em duas ocasiões. Parece maldição de família!

Aliás, o suicídio foi tema recorrente na literatura de Ernest Hemmingway. E não somente nela, mas em várias cartas que escreveu, em conversas com amigos e em outros tantos dos seus escritos. Fica a impressão que ele teve sempre isso em mente, mas que, por muito tempo, não teve coragem de perpetrar tão terrível ato. Talvez (não sei se provável, mas acho que possível), seu estado psicológico, na época em que se matou, explique porque agiu dessa maneira. Na ocasião, o escritor estava com vários problemas de saúde, como diabetes, hipertensão , depressão profunda, com periódicos lapsos de memória. Vai daí...

Mas voltando ao nosso tema, Margaux, ao contrário de tantas outras pessoas que contam com celebridades na parentela, resolveu reparar a injustiça com a memória de Ernest Hemmingway. Contratada por uma rede norte-americana de televisão, em 1984, para fazer um documentário sobre a vida do escritor, teve a oportunidade de conhecer detalhes pitorescos e reveladores não somente do talentoso romancista e repórter (um dos jornalistas mais brilhantes da sua geração), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1954, mas de um homem inquieto e generoso, idealista e abnegado, que correu o mundo em busca de guerras para lutar e de aventuras para viver. E a rigor, emoções é que nunca faltaram a essa figura controvertida e grandiosa.

Sua vida, certamente, foi muito mais agitada e sobretudo excitante do que os seus consagrados romances, situados hoje, sem favor algum, entre os mais importantes da literatura mundial de todos os tempos. Por exemplo, em 1918, quando tinha apenas 20 anos de idade, engajou-se voluntariamente no exército do seu país, depois que os Estados Unidos decidiram entrar na Primeira Guerra Mundial. Foi dessa experiência, aliás, que surgiu o enredo do consagrado romance “Adeus às Armas”, publicado em 1929. O escritor, todavia, desencantou-se com  seus conterrâneos, principalmente com as convenções sociais vigentes em sua terra natal, mesmo tendo sido acolhido como herói. Por causa desse desencanto, decidiu exilar-se, voluntariamente, em Paris. Em 1929, voltou a morar na pátria, posto que por pouco tempo, mas isolou-se e passou a viver longe de tudo e de todos.

Na capital francesa, para onde sempre voltava quando o tédio batia, fez parte do grupo de intelectuais boêmios, conhecido como a “geração perdida”, um bando de idealistas inconformados, dispostos a mudar o mundo, investindo contra valores estabelecidos, mas injustos, e contra os poderes constituídos. Um dos seus maiores amores foi a Espanha. Entre outras coisas, apreciava demais a famosa festa de San Firmin, em Pamplona, com a maluca corrida de touros pelas ruas da cidade, tradição que é mantida até os dias atuais. Realizou dois safaris à África, que lhe renderam dois magníficos livros, onde ressalta muito mais o talento do competente repórter do que o do criativo romancista: “As Verdes Colinas da África” e “Hora Triunfal do Senhor Macomber”, ambos publicados em 1935.

Inconformado com o fascismo, que avançava pela Europa e já ameaçava o mundo, aderiu aos republicanos espanhóis, em 1936, tão logo estourou a guerra civil espanhola, lutando contra as forças do caudilho Francisco Franco (que se autodenominava “generalíssimo”), apoiadas por Adolf Hitler e Benito Mussolini. Um dos seus derradeiros gestos de rebeldia foi a amizade que firmou com Fidel Castro, logo depois que este chegou ao poder, motivo de ácidas críticas e recriminações (chegou a ser chamado de “traidor” em alguns círculos dos Estados Unidos), e que sustentou pelo resto da vida.

Tudo isso a neta apurou nos respectivos locais dos fatos e se surpreendeu com o que descobriu. Confessou que pôde conhecer, finalmente, o famoso avô muito mais do que supunha ser possível. Para isso, Margaux viajou muito, na trilha do ousado aventureiro. Foi, por exemplo, a Key West, onde Ernest Hemmingway gostava de pescar. Esteve em Cuba, na modesta casa em que o escritor viveu e onde se matou. Viajou a Paris e esteve em todos os centros de boêmia que o avô freqüentou. E, claro, não podia deixar de visitar a Espanha e principalmente Pamplona, onde também se excitou, como o romancista, com a famosa festa de San Firmin.

Ao fim dessa jornada sentimental, que resultou em um magnífico e detalhado documentário, Margaux concluiu: “Foi uma procura pessoal para mim. Averiguar o que fez e conhecer suas histórias e muitas coisas que não figuram sequer em livros, foi fascinante e revelador”. Antes, porém, foi necessário que a neta de Ernest Hemmingway fosse contratada para fazer um documentário para a televisão. E se não fosse? Tomaria essa iniciativa? Provavelmente não! Talvez jamais conhecesse como foi e o que realizou seu ilustre avô. É como diz o surrado, porém sempre oportuno, clichê: “Santo de casa, nem sempre (ou quase nunca) faz milagres”.


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