Saturday, March 08, 2014

Refinado poeta e consagrado ficcionista

Pedro J. Bondaczuk

O vigésimo integrante (por ordem de publicação) da antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que, como o leitor já está cansado de saber, tomei como referência para esta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – é Antonio Santos Moraes. Embora assumido poeta (e dos bons), projetou-se, mesmo, na Literatura nacional, escrevendo ficção.

Coincidência ou não, sua trajetória pessoal é bastante parecida com a da maioria dos demais enfocados nestas minhas descompromissadas análises. Por exemplo, formou-se, também, em Direito (como tantos outros), posto que no Rio de Janeiro, para onde se mudou ainda jovem e onde fixou residência. Exerceu, igualmente, o jornalismo, atividade em que também se destacou e fez carreira. Só que começou na vida literária, reitero, como poeta, embora tenha, anos depois, se consagrado, de fato, na ficção.

Antonio Santos Moraes nasceu na cidade de Casa Nova, na região banhada pelo Rio São Francisco, em 20 de setembro de 1920. Pitorescamente, porém, o cenário que melhor descreveu na sua principal obra ficcional não foi o de sua terra natal, como seria de se esperar, mas o dos morros cariocas, com seus dramas, comédias e tragédias. E não foi em nenhum conto que revelou essa incrível capacidade de observação e de descrição, mas no romance “Menino João”, publicado em 1958, pela Livraria São José, com o qual conquistou o Prêmio do Instituto Nacional do Livro, no gênero. Não deixou, porém, de escrever sobre sua terra. Nem poderia. Tratou dela, sim, e em muitos contos, reunidos em “O caçador de borboletas” (Editora Pongetti).

Santos Neto escreveu, também, para o teatro. Aliás foi com um livro do gênero, “Terras e sangue”, que conquistou o Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Como se vê, sua qualidade de ficcionista é incontestável, embora, reitero, tenha começado a carreira literária como poeta (e dos bons). Afinal, uma coisa não exclui a outra, ou não deve excluir. Atestam isso seus livros “A nuvem de fogo”, o de estréia, de 1948; “Tempo e espuma” (1959) e “Poemas do Hóspede” (1969), todos de poesias. Publicou, ainda, a peça “Zumbi”, e a biografia “Joaquim Nabuco”, voltada para a faixa juvenil.

O conto com que Santos Moraes participa de “Histórias da Bahia” tem o título de “O piano”. A história se passa em Cachoeira, cidade das margens do Rio São Francisco. O enredo é um tanto cômico. Ou melhor, é tragicômico. Explico. Esse “piano”, a que o escritor se refere já no título, não é o instrumento musical, como o leitor pode ser induzido a pensar, mas é um “defunto”. Isso mesmo! Santos Moraes insinua que, na sua região, era comum a polícia designar, aleatoriamente, pessoas “desocupadas” para carregarem o caixão dos mortos – dos indigentes que não tinham parentes que lhes providenciassem um funeral, mesmo que simples – da Santa Casa local para o cemitério da cidade. “Carregar o piano”, portanto, naquela área da Bahia, significava “levar os mortos” à sua derradeira e definitiva morada. Transcrevo o início desse delicioso conto e deixo por conta de sua imaginação, caríssimo leitor, concluir qual foi seu desfecho:

“Os carregadores conversavam no cais de Cachoeira, à esperas do ‘Raul Soares’, que já deveria estar no porto desde cedo. A vazante do rio, no entanto, atrasara o navio e eles permaneciam ali para não perderem a oportunidade de conseguir alhum trabalho na descarga. O sol quente abrasava. Subia um mormaço que os deixava sonolentos.
-êta vida braba – disse Manuel, o mais velho. – Se o diabo deste vapor não chegar logo vou pra casa sem um tostão.
_Azar o seu. Até que peguei um servicinho de manhã. Levei cinqüenta sacos de farinha pra estação – respondeu outro.
-Então se o ‘Raul’ não atracar, você me empresta alguns trocados? Amanhã lhe pago.
-Tá bem.

Olhavam para o sul, mas no rio não divisavam nenhum navio. Quando o soldado de polícia chegou perto, nem notaram sua presença. Ele foi falando:
-Hoje tem piano pra carregar, pessoal. Vocês quatro aí, vamos logo.
-Arranje outros, tamo esperando o ‘Raul’. Tem muito cabra aí pelo cais na vagabundagwem.
-Não vou atrás de ninguém. Vocês quatro servem.
-Mas seu cabo, tenha paciência, tamo sem ganho nenhum até agora.
-Não adianta me chamar de cabo. Sou soldado mesmo. Vocês quatro vão comigo.
-Eu não vou – desafiou o mais moço.
-Vai, sim. Quem não quiser ir eu meto na cadeia. Raça ruim. Ficam o dia todo bebendo cachaça, mas preá fazer uma caridade é preciso que a polícia obrigue.
-Por que os soldados não carregam o piano? Vocês não ganham do governo?

O milico ameaçou puxar o sabre:
-Menos confiança, seu peste. O ‘Raul’ não chega mais hoje, só amanhã.
-Tá bem, pessoal – disse Manuel – Vamos despachar logo esse infeliz pro beleléu.

Os quatro seguiram em frente. O milico escoltou-os. Ao passarem pelos companheiros que haviam escapado àquele trabalho indesejável, ouviram ditos chistosos.
-Vão tocar piano, heim, seus trouxas?
-Dê lembrança aos mortos, Manuel.

Responderam com palavrões. O soldado levou-os para a Santa Casa de Misericórdia onde esperaram meia hora. O carpinteiro ainda não havia entregue o caixão. Logo que o esquife chegou, os enfermeiros providenciaram a saída do enterro. Quando o morto, que estava estirado na mesa, foi colocado dentro, um dos carregadores começou a engulhar. Ameaçou sair pela porta afora, mas o milico agarrou-o pelo braço.
-Tô com o estômago revoltado, homem. Vou tomar uma pinga.
-Ninguém sai daqui, sentenciou o soldado.

Logo depois teve início o enterro do indigente. Os quatro homens segurando o caixão, o milico atrás. Ninguém mais. Na rua, os transeuntes tiravam o chapéu, as mulheres benziam-se, murmurando preces. Eles andavam o mais depressa possível.
-Mais devagar, seus pestes – dizia o milico.

Seguiam quase correndo, aos trancos e barrancos. Uma velhinha pediu-lhes que parassem a fim de fazer uma oração para o morto, mas eles não prestaram atenção.
-Cruz credo – benzeu-se a velha.
-Raça de malditos, respeitem o pobre defunto – dizia o soldado.

O cemitério era bem afastado da cidade. Muito tinham que andar ainda por uma estrada deserta onde somente de longe via-se uma casa ou um boteco. Ao transporem o limite urbano, o soldado despediu-se (...)”.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: