Thursday, March 20, 2014

O poeta da solidão

Pedro J. Bondaczuk

O ócio torna as horas lentas e os dias velozes. A atividade torna as horas rápidas e os dias lentos”. Quem fez essa constatação foi um dos poetas italianos mais sensíveis e inspirados do século XX. Refiro-me a Cesare Pavese, cujo prestígio – notadamente fora da Itália – cresceu muito após sua morte. Seus poemas caracterizam-se pela carência afetiva, pela necessidade que todos temos de sermos amados, mas que muitos de nós, por um motivo ou por outro, por circunstâncias que não raro fogem ao nosso controle, não o somos. Ou, pelo menos, não nos sentimos.

Pavese é considerado o grande poeta da solidão. Seus poemas são belíssimos, todavia são tristes e mais do que isso, pungentes. Entre os destaques da sua obra está seu diário pessoal, publicado postumamente, sob o título “Ofício de viver”. É considerado um dos melhores (muitos acham que é o melhor) do gênero. São confidências que, provavelmente, o autor não gostaria que viessem a público, por seu óbvio caráter íntimo. Todavia, são páginas tão belas, tão verdadeiras, tão profundas, que não havia como as manter inéditas, ainda mais não existindo nenhuma recomendação expressa do poeta para que não as publicassem.

Cesare Pavese nasceu em Stefano Balbo, nas Langhe (província de Cuneo) em 9 de setembro de 1908. Quando criança, sua família mudou-se para Turim, onde ele viveu a maior parte da sua vida. Teve uma infância amarga, marcada pela morte prematura do pai e pela criação altamente repressora da mãe, uma pessoa dura, amarga, incapaz de manifestar qualquer gesto de carinho e afeição por quem quer que fosse. Quando mais Pavese precisava dela (aos 23 anos de idade), ela “desapareceu”, sem nenhum aviso e sem dizer para onde ia e jamais tornou a ser vista pelo poeta. Um dos seus livros marcantes, “A lua e as fogueiras”, trata dessa questão de carência afetiva, embora o autor não explicite que se trate de experiência pessoal. Mas tudo indica que era.

A obra poética de Pavese é inquestionável. É, toda ela, das mais profundas e introspectivas da Literatura mundial. Todavia, é praticamente consenso entre os críticos que seu melhor livro de poesias é “Trabalhar cansa”, sem desmerecer, óbvio, os demais. Ele está entre meus poetas preferidos, embora eu não seja, propriamente, apreciador de textos tristes, até por questão de temperamento. Mas seus versos são tão ricos, tão verdadeiros, tão pungentes e sinceros, que só mesmo quem não seja amante da Literatura (ou, então, quem não saiba ler) não se sentirá atraído por eles.

Cesare Pavese obteve sua licenciatura em Letras com uma tese marcante sobre outro poeta polêmico, no entanto, genial. Refiro-me ao norte-americano Walt Whitman. Esse autor sempre esteve entre seus prediletos, embora a poética de ambos não guarde qualquer semelhança. Não vejo nenhuma contradição nisso. Posso gostar muito de determinado escritor, sem, no entanto, tentar pautar meu estilo e minha temática pelos dele. Pavese fez vários estudos sobre literatura norte-americana, e dos mais variados autores (não Walt Whitman, portanto). Todos esses textos, e a brilhante tese de sua licenciatura, foram reunidos em livro, publicado postumamente em 1951. O título dessa obra – que é, hoje, fonte de referência para estudiosos – é “A literatura norte-americana e outros ensaios”.

Pincei, um tanto aleatoriamente, algumas citações de Cesare Pavese, que ilustram bem sua refinada maneira de escrever. Como esta: “Quando se sofre, julga-se que para lá do círculo existe a felicidade; quando não se sofre, sabe-se que a felicidade não existe e sofre-se, então, por não sofrer”. Ou como esta: “Tudo o que não conseguimos realizar sós, diminui a nossa liberdade”. Ou esta: “Todo o luxo se paga. Tudo é luxo, a começar por estar no mundo”. Ou, então, esta: “As coisas são descobertas por meio das lembranças que se têm delas. Relembrar uma coisa significa vê-la – apenas agora – pela primeira vez”.

Poderia citar muitos e muitos e muitos outros trechos mais, da sua produção em verso ou prosa,  porém recomendo que o leitor interessado “devore” os seus livros, como eu o fiz e faço mediante releituras, num lauto e delicioso banquete intelectual. Bem, estou tratando de um poeta e, como tal, não poderia deixar de reproduzir uma amostra de sua inspirada poesia. Trago ao seu conhecimento esse poema intitulado “Disciplina”, extraído do seu livro “Trabalhar cansa”:

“O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefatos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos”.

A humanidade perdeu este imenso talento, precocemente. Cesare Pavese deu cabo da própria vida, ingerindo uma dose cavalar de barbitúricos, no quarto de um hotel de Turim. Foi num dia de verão europeu, em 27 de agosto de 1950. O poeta não suportou o peso das lembranças, a tortura da angústia e a profunda carência de amor. Optou pelo mistério do “não ser”.  Tinha, na ocasião, apenas 42 anos de idade. Quanta coisa boa o poeta não deixou de escrever! Uma questão que sempre me intrigou é: O que será que passa na cabeça de um suicida? Coisa boa, óbvio, é que não é. Posso apenas imaginar o tamanho do seu desespero, embora não considere a atitude de abreviar a vida como solução. Mas... em cada cabeça, uma sentença...


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