Injustiçado pela
posteridade
Pedro
J. Bondaczuk
A realização de um
estudo, minimamente decente e útil, como este a que me propus, sobre 23 dos
principais ficcionistas baianos – com base na antologia de contos “Histórias da
Bahia” (Edições GDR, 1963) – é ato de ousadia e, ao mesmo tempo, enorme risco
de cometer inúmeras gafes. Uma empreitada deste porte requer, antes e acima de
tudo, fartura de fontes informativas, além de tempo para digeri-las e chegar a
algumas conclusões, que, ainda assim, são passivas de erros. Imaginem encarar
um desafio como esse sem contar com praticamente nada em que se basear. É uma
temeridade, sem dúvida. E olhem que estou estudando, “apenas”, 23 ficcionistas.
Ora, a Bahia conta com centenas deles. Imaginem se me propusesse a abordar,
digamos, a maioria deles. Nem quero pensar!
Não disponho de tempo e
sou induzido a valer-me mais da memória e da intuição, do que de elementos
concretos para esta série de estudos. Tenho, por exemplo, informações de
determinados escritores suficientes para escrever não apenas um, ou dois, ou
dez textos, mas um livro inteiro e, em alguns casos, vários deles. Já de
outros... não conto sequer com referências mínimas, básicas, como onde e quando
o personagem nasceu, se está vivo ou não e quais são suas principais obras.
Isso não quer dizer que aqueles dos quais conto com fartas fontes informativas
sejam mais importantes ou melhores do que os de que careço do mínimo. Aí é que
está minha grande dificuldade.
Para avaliar a devida
importância de cada personagem estudado, com pequena margem de erro, eu
precisaria ir aos locais em que essas pessoas viveram e atuaram, entrevistar
quem com elas conviveu e que tenha testemunhado seus feitos, e por aí vai. Não
posso, todavia, por uma série de impeditivos, agir assim. Então, por que me
aventuro a empreender estes estudos, correndo tantos riscos de imprecisão?
Porque alguém precisaria fazer isso. Para fazer justiça a esses escritores,
virtualmente desconhecidos (salvo exceções) fora dos limites do seu Estado. E,
não raro, ignorados até na terra natal. Isso me incomoda.
O próximo ficcionista a
ter seu conto incluído na antologia “Histórias da Bahia”, Nelson Gallo, por
exemplo, é o típico caso de alguém de quem é quase impossível de se obter
informações fora do local em que viveu e atuou. Sei que nasceu em Salvador, mas
não sei quando e muito menos se ainda está vivo e atuante ou não. Sei que foi (ou
é?) popular na capital baiana, porquanto até tem rua com o seu nome na cidade.
E, convenhamos, para que isso ocorra, é indispensável que o sujeito tenha se
destacado em alguma coisa de relevo para a sociedade local.
Outra coisa que sei a
seu respeito, é que lutou muito para ser escritor. Que foi um operário da base
aérea de Ipitanga e que nunca desistiu de escrever, até conseguir publicar um
primeiro livro. A quanto ascende a sua obra, porém, desconheço. Presumo que
tenha sido farta e variada. Mas... os únicos dados (e escassíssimos) que
disponho dele, datam de 40 anos. E quatro décadas, convenhamos, é tempo demais!
É praticamente uma vida!
Sei, por exemplo, que
Nelson Gallo, quando já reconhecido como escritor, dirigiu o aeroporto de
Ilhéus, o que me leva a concluir que residiu nessa cidade do Sul da Bahia. Na
oportunidade em que a antologia que me serve de referência para estes estudos
foi publicada, este escritor-operário ou operário-escritor já havia publicado
cinco livros. Na época, o principal deles era “O pecado viaja de trem”, do qual
foi extraído o conto do mesmo nome, cujo trecho inicial reproduzo abaixo. As
outras obras com que já contava, na oportunidade, eram: “Um retrato de Itapoã”,
“Baixa dos Sapateiros”, “Ninguém olha o céu” e “Bahia de todas as doçuras”. Ah,
e não se pode esquecer de um guia turístico que escreveu, da cidade de Ilhéus.
Reitero que Nelson
Gallo foi e é importante para as letras da Bahia, e mais do que se possa supor,
caso contrário não emprestaria seu nome a uma das principais ruas de Salvador.
Peço escusas, pois, ao leitor por trazer à baila tão poucas referências deste
vencedor, que soube concretizar o sonho de ser escritor. Só lamento haver tão
escassas e desatualizadas referências a seu respeito, pelo menos nesse caótico
oceano de informações que é a internet.
Leiam o trecho abaixo
do seu conto “O pecado viaja de trem” e sintam a força, o talento e a
capacidade narrativa desse excelente escritor. Atrevo-me a dizer que se tratou
(ou se trata, pois, reitero, não sei se ainda está vivo), de contista genial,
de um grande ficcionista, entre os maiores e melhores da Bahia e do País.
Porém... injustiçado pela posteridade...
“Pelos
campos desertos e silenciosos onde, de raro em raro, o pio de um pássaro e uma
árvore a erguer-se dentre os mirrados arbustos quebravam, aquele, o grave e
majestoso silêncio, esta, a desolação da paisagem sempre igual, sob a pálida
luz das estrelas o trem avançava, furando o silêncio, o frio e a escuridão da
noite.
O
telegrafista já havia consultado o relógio de pulso umas vinte vezes e acabara
de consultá-lo nesse instante quando o colega apareceu.
-
Mas agora, hein!... Pensei até que você não viesse.
-
Ah, eu não quero é isso! Não já cvheguei?...
Durval
levantou-se, vestiu o paletó caqui e pôs o boné à cabeça.
-
O M-6 está entre Pedreiras e Cajuí, com uma roda quebrada... o noturno...
Humberto
respondeu “sim”, “sim”, a tudo o que o outro dizia, mas parecia não estar
prestando atenção. Depois, impacientou-se:
-
Já sei. Vá embora, deixe tudo comigo... estou ciente...
-
Antes do S-4 chegar eu estarei de volta.
-
Sim... – retrucou Humberto, com ironia.
Durval
já estava na porta quando se lembrou. Meteu a mão no bolso.
-
O dinheiro, ia me esquecendo.
Entregou
ao colega duas notas de cinqüenta cruzeiros. Sem uma palavra o outro pegou-as e
fê-las desaparecer no bolso.
Durante
alguns instantes ouviu-se apenas o som do manipulador. Uma locomotiva apitou
ali perto. Depois silêncio. Sentado num caixão junto à porta, o guarda-freio
dormitava, entre uma e outra fumaça do cachimbo.
-
O homem é o bicho mais besta do mundo 0 falou Humberto.
O
outro sentado no caixão levantou a cabeça, tornou-se atento. O telegrafista não
prosseguiu e o velho sorriu: uma careta na face sulcada de rugas. Tirou o
cachimbo da boca. Cuspiu. E confirmou:
-
É o bicho mais besta que Deus fez.
Humberto
indicou um ponto além da porta iluminada, pela qual o colega saíra: uma sombra
imprecisa no negrume da noite.
-
Enxodosado pela Detinha. – Fez uma pausa. Coitado. – Outra pausa. – Eu também
já fui tarado pela mulher. Mas estou curado. Há muito tempo. Antes mesmo desta
noite...
Falava
mais para si mesmo, quase ignorando a presença do velho. Depois tirou do bolso
as cédulas que recebeu de Durval e atirou-as na mesa.
-
O preço da traição! – exclamou. – Nunca recebi dinheiro para tirar o serviço de
um colega, mas esta é uma ocasião especial... Bem, talvez que uma cachaça ajude
a noite correr, passar mais depressa...
Ao
ouvir a palavra mágica “cachaça”, o guarda-freio levantou-se. Recebeu uma das
cédulas e permaneceu esperando.
-
Qualquer, qualquer veneno serve. Pura. Nada de mistura.
Agora
estava olhando fixadamente para a porta. Súbito o som da orquestra que aos
sábados animava os bailes do Cabaré Imperial chegou até ele, através da rua
Direita, da Praça da Matriz, do Paço Municipal, da cadeia e do cinema da
cidade, um quilômetro além.
-
“Mulheres e cachaça” – pensou. –“Estou mesmo me afundando”.
Nas
rodas boêmias da cidade corria um ditado:
-
“Mulé de um amigo pra mim é home”.
E
ele infringira o código. Mas não era a traição ao colega – a mulher, afinal,
era de todo mundo – o que o enojava. Ódio de si mesmo, era o que sentia – algo
imperdoável. Teria virado o rosto se alguém lhe pusesse defronte um espelho
(...)
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