Saturday, March 01, 2014

Injustiçado pela posteridade

Pedro J. Bondaczuk

A realização de um estudo, minimamente decente e útil, como este a que me propus, sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – com base na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, 1963) – é ato de ousadia e, ao mesmo tempo, enorme risco de cometer inúmeras gafes. Uma empreitada deste porte requer, antes e acima de tudo, fartura de fontes informativas, além de tempo para digeri-las e chegar a algumas conclusões, que, ainda assim, são passivas de erros. Imaginem encarar um desafio como esse sem contar com praticamente nada em que se basear. É uma temeridade, sem dúvida. E olhem que estou estudando, “apenas”, 23 ficcionistas. Ora, a Bahia conta com centenas deles. Imaginem se me propusesse a abordar, digamos, a maioria deles. Nem quero pensar!

Não disponho de tempo e sou induzido a valer-me mais da memória e da intuição, do que de elementos concretos para esta série de estudos. Tenho, por exemplo, informações de determinados escritores suficientes para escrever não apenas um, ou dois, ou dez textos, mas um livro inteiro e, em alguns casos, vários deles. Já de outros... não conto sequer com referências mínimas, básicas, como onde e quando o personagem nasceu, se está vivo ou não e quais são suas principais obras. Isso não quer dizer que aqueles dos quais conto com fartas fontes informativas sejam mais importantes ou melhores do que os de que careço do mínimo. Aí é que está minha grande dificuldade.

Para avaliar a devida importância de cada personagem estudado, com pequena margem de erro, eu precisaria ir aos locais em que essas pessoas viveram e atuaram, entrevistar quem com elas conviveu e que tenha testemunhado seus feitos, e por aí vai. Não posso, todavia, por uma série de impeditivos, agir assim. Então, por que me aventuro a empreender estes estudos, correndo tantos riscos de imprecisão? Porque alguém precisaria fazer isso. Para fazer justiça a esses escritores, virtualmente desconhecidos (salvo exceções) fora dos limites do seu Estado. E, não raro, ignorados até na terra natal. Isso me incomoda.

O próximo ficcionista a ter seu conto incluído na antologia “Histórias da Bahia”, Nelson Gallo, por exemplo, é o típico caso de alguém de quem é quase impossível de se obter informações fora do local em que viveu e atuou. Sei que nasceu em Salvador, mas não sei quando e muito menos se ainda está vivo e atuante ou não. Sei que foi (ou é?) popular na capital baiana, porquanto até tem rua com o seu nome na cidade. E, convenhamos, para que isso ocorra, é indispensável que o sujeito tenha se destacado em alguma coisa de relevo para a sociedade local.

Outra coisa que sei a seu respeito, é que lutou muito para ser escritor. Que foi um operário da base aérea de Ipitanga e que nunca desistiu de escrever, até conseguir publicar um primeiro livro. A quanto ascende a sua obra, porém, desconheço. Presumo que tenha sido farta e variada. Mas... os únicos dados (e escassíssimos) que disponho dele, datam de 40 anos. E quatro décadas, convenhamos, é tempo demais! É praticamente uma vida!

Sei, por exemplo, que Nelson Gallo, quando já reconhecido como escritor, dirigiu o aeroporto de Ilhéus, o que me leva a concluir que residiu nessa cidade do Sul da Bahia. Na oportunidade em que a antologia que me serve de referência para estes estudos foi publicada, este escritor-operário ou operário-escritor já havia publicado cinco livros. Na época, o principal deles era “O pecado viaja de trem”, do qual foi extraído o conto do mesmo nome, cujo trecho inicial reproduzo abaixo. As outras obras com que já contava, na oportunidade, eram: “Um retrato de Itapoã”, “Baixa dos Sapateiros”, “Ninguém olha o céu” e “Bahia de todas as doçuras”. Ah, e não se pode esquecer de um guia turístico que escreveu, da cidade de Ilhéus.

Reitero que Nelson Gallo foi e é importante para as letras da Bahia, e mais do que se possa supor, caso contrário não emprestaria seu nome a uma das principais ruas de Salvador. Peço escusas, pois, ao leitor por trazer à baila tão poucas referências deste vencedor, que soube concretizar o sonho de ser escritor. Só lamento haver tão escassas e desatualizadas referências a seu respeito, pelo menos nesse caótico oceano de informações que é a internet.

Leiam o trecho abaixo do seu conto “O pecado viaja de trem” e sintam a força, o talento e a capacidade narrativa desse excelente escritor. Atrevo-me a dizer que se tratou (ou se trata, pois, reitero, não sei se ainda está vivo), de contista genial, de um grande ficcionista, entre os maiores e melhores da Bahia e do País. Porém... injustiçado pela posteridade...       

“Pelos campos desertos e silenciosos onde, de raro em raro, o pio de um pássaro e uma árvore a erguer-se dentre os mirrados arbustos quebravam, aquele, o grave e majestoso silêncio, esta, a desolação da paisagem sempre igual, sob a pálida luz das estrelas o trem avançava, furando o silêncio, o frio e a escuridão da noite.

O telegrafista já havia consultado o relógio de pulso umas vinte vezes e acabara de consultá-lo nesse instante quando o colega apareceu.
- Mas agora, hein!... Pensei até que você não viesse.
- Ah, eu não quero é isso! Não já cvheguei?...

Durval levantou-se, vestiu o paletó caqui e pôs o boné à cabeça.
- O M-6 está entre Pedreiras e Cajuí, com uma roda quebrada... o noturno...

Humberto respondeu “sim”, “sim”, a tudo o que o outro dizia, mas parecia não estar prestando atenção. Depois, impacientou-se:
- Já sei. Vá embora, deixe tudo comigo... estou ciente...
- Antes do S-4 chegar eu estarei de volta.
- Sim... – retrucou Humberto, com ironia.

Durval já estava na porta quando se lembrou. Meteu a mão no bolso.
- O dinheiro, ia me esquecendo.

Entregou ao colega duas notas de cinqüenta cruzeiros. Sem uma palavra o outro pegou-as e fê-las desaparecer no bolso.

Durante alguns instantes ouviu-se apenas o som do manipulador. Uma locomotiva apitou ali perto. Depois silêncio. Sentado num caixão junto à porta, o guarda-freio dormitava, entre uma e outra fumaça do cachimbo.
- O homem é o bicho mais besta do mundo 0 falou Humberto.

O outro sentado no caixão levantou a cabeça, tornou-se atento. O telegrafista não prosseguiu e o velho sorriu: uma careta na face sulcada de rugas. Tirou o cachimbo da boca. Cuspiu. E confirmou:
- É o bicho mais besta que Deus fez.

Humberto indicou um ponto além da porta iluminada, pela qual o colega saíra: uma sombra imprecisa no negrume da noite.
- Enxodosado pela Detinha. – Fez uma pausa. Coitado. – Outra pausa. – Eu também já fui tarado pela mulher. Mas estou curado. Há muito tempo. Antes mesmo desta noite...

Falava mais para si mesmo, quase ignorando a presença do velho. Depois tirou do bolso as cédulas que recebeu de Durval e atirou-as na mesa.

- O preço da traição! – exclamou. – Nunca recebi dinheiro para tirar o serviço de um colega, mas esta é uma ocasião especial... Bem, talvez que uma cachaça ajude a noite correr, passar mais depressa...

Ao ouvir a palavra mágica “cachaça”, o guarda-freio levantou-se. Recebeu uma das cédulas e permaneceu esperando.
- Qualquer, qualquer veneno serve. Pura. Nada de mistura.

Agora estava olhando fixadamente para a porta. Súbito o som da orquestra que aos sábados animava os bailes do Cabaré Imperial chegou até ele, através da rua Direita, da Praça da Matriz, do Paço Municipal, da cadeia e do cinema da cidade, um quilômetro além.
- “Mulheres e cachaça” – pensou. –“Estou mesmo me afundando”.

Nas rodas boêmias da cidade corria um ditado:
- “Mulé de um amigo pra mim é home”.

E ele infringira o código. Mas não era a traição ao colega – a mulher, afinal, era de todo mundo – o que o enojava. Ódio de si mesmo, era o que sentia – algo imperdoável. Teria virado o rosto se alguém lhe pusesse defronte um espelho (...)


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