Wednesday, March 12, 2014

Contista por vocação e opção

Pedro J. Bondaczuk

Aos trancos e barrancos, enfrentando dificuldades de todos os tipos, principalmente de carência de fontes informativas minimamente confiáveis, eis que me aproximo da conclusão desta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos. E olhem que são figuras consagradas, a maioria unanimidades no mundo das letras, e, ainda assim... Foi uma tarefa de Hércules. Foram mais de sessenta dias de ingentes pesquisas, de noites mal dormidas, de leitura e triagem de dados, de análise e de redação – tudo isso, sem abrir mão de um único dos meus diversos (e põe diversos nisso!) compromissos diários. Nem acredito que essa empreitada está próxima do fim. O que fiz – embora não fosse essa a intenção –foi escrever um livro, de mais de 400 páginas, tendo vocês, caríssimos leitores, por testemunhas.

Mas... a série não acabou. Resta tratar, ainda, de dois ficcionistas, dos quais (felizmente) disponho de fartura de informações, por se tratarem de escritores cuja qualidade e importância contam com a quase unanimidade de reconhecimento dos especialistas e amantes de Literatura. O primeiro, de quem tratarei hoje, que é o vigésimo segundo (na ordem de publicação) a se fazer presente na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que, reitero pela enésima vez, tomei como referência para o resgate (de alguns) e confirmação (de outros) mestres da ficção baianos – é Vasconcelos Maia. Ao contrário da imensa maioria dos 21 anteriores, que se dedicaram, também, a outros tantos gêneros, que não o da história curta (ficcionais ou não), ele foi, antes e acima de tudo (por vocação e por opção), contista. Pelo menos os livros que legou para a posteridade tiveram essa característica.

Carlos Vasconcelos Maia nasceu em Santa Inês, município do Sudoeste baiano, em 20 de fevereiro de 1923. Ao contrário de tantos outros conterrâneos, analisados nesta série, não precisou emigrar para fazer carreira literária. Consagrou-se como magnífico contista em sua Bahia natal, mais especificamente, em Salvador, onde exerceu, entre outros cargos públicos, por certo tempo, a função de Secretário de Turismo da cidade. Foi, ainda, assessor da Fundação Cultural do Estado da Bahia, de 1983 até a data de seu falecimento, ocorrido em 14 de julho de 1988, aos 65 anos de idade. Para se avaliar sua importância como contista, basta informar que são raríssimas as antologias de contos que não tenham sua participação. E não apenas as nacionais, mas também do Exterior. Várias de suas histórias foram traduzidas e publicadas em coletâneas da Itália, França, Alemanha, Bulgária, Rússia e Japão. Só isso já dá a exata dimensão da sua qualidade literária.

Ao longo desta série de estudos citei-o várias vezes como o criador do célebre “Cadernos da Bahia”, revista de cultura e divulgação, que circulou por quatro anos (1948 a 1952) e que revelou inúmeros escritores, que hoje são destaques literários nacionais. Essa publicação foi tão importante, que é considerada, com justiça, como movimento artístico e cultural. A importância de Vasconcelos Maia para a ficção baiana extrapola, portanto, sua produção pessoal, embora seja esta a que de fato conte para o analista.

Além das inúmeras antologias nacionais e internacionais de que participou, o revolucionário ficcionista (que conforme testemunho de seus amigos, era pessoa simples e tímida até) foi, provavelmente, recordista de publicação de contos em revistas. Publicou-os, por exemplo, entre outras, em “Ângulos”, “Revista da Bahia”, “A Cigarra”, “Revista da Cultura da Bahia”, “Porto de Todos os Santos”, “América”, “Exu”, “Revista da Academia Baiana de Letras” e vai por aí afora. Isso, sem falar em, jornais, em especial dois: “A Tarde” e “Jornal da Bahia”. Aliás, neste último, manteve, por seis anos consecutivos, a coluna “Dia sim, dia não”, na qual publicou mais de 600 crônicas. Ressalte-se que esse foi o único gênero a que ele se dedicou que não fosse o conto.

Dos livros de Vasconcelos Maia, destaco: “Fora da vida” (1946), “Contos da Bahia” (1951), “Feira de água de menino” (1951), “O cavalo e a rosa” (1955), “O primeiro mistério” (1960), “O leque de Oxum” (1961), “História da gente da Bahia” (1964), “ABC do Candomblé” (1978), “Cação de areia” (1986) e “Sol, terra, mar” (2000, póstumo). O trabalho literário com que participa de “Histórias da Bahia” tem o título de  “Preto e branca”, cujo início reproduzo abaixo, para que o leitor conheça pelo menos um pouco da sua insuperável capacidade descritiva.

“Era uma noite quente de verão. Sem lua, sem nuvem, sem vento. A cem quilômetros corria o Kaiser pelo asfalto. Sua estabilidade era perfeita. Mas as molas rangiam, o chassi balançava, a chaparia estremecia. Com o ouvido, Orlando captava os defeitos do carro. Amava-o um bocado. Sentia que os proprietários anteriores tivessem-no estragado tanto. O peso excessivo de passageiros e bagagens, quatro corridas diárias ao aeroporto, haviam-no rebentado muito. ‘Um dia’ – pensou Orlando – ‘boto esta catraia em forma’. Não era uma esperança a toa. Conseguia boas férias e amealhava para o conserto geral.

Cogitando nas necessidades do velho Kaiser, vinha Orlando, chofer de praça no Largo do Teatro. Mas apreciava também o que o amigo tinha de bom e positivo. O motor, por exemplo. Seu ronco era macio e uniforme. A estrada plana e deserta oferecia-se à sua voragem. O coqueiral, do lado esquerdo, passava chispante. Do lado direito, estendia-se a praia. Selvagem, solitária, de areia tão branca que brilhava. As ondas nela se deitavam, mansas e sem força.

Apesar de todos os vidros descidos, apesar do carro estar puxando cem quilômetros, Orlando não sentia frescor na brisa que lhe varria o rosto. Embora úmida e salitrosa, era quente. Mesmo assim a viagem não o desagradava. Gostava de correr sozinho no seu velho Kaiser. Sem passageiros, soltava-o na estrada. Era como nos tempos de menino, em que agregado numa fazenda de gado, cavalgava seu campeiro. Carro e cavalo não lhe faziam diferença. Amava o carro como amara seu cavalo. Como se ambos tivessem igualmente o mesmo sentimento recíproco de fidelidade.

A estrada fez suave curva. As luzes de Itapoã surgiram, distantes, sobre o mar. Orlando premiu o pé no acelerador. Sem queixa, o motor rugiu, foi a cento e vinte. E, de súbito, como uma estrela cadente, a sombra saltou na estrada. A visão foi imprecisa. Quase uma percepção. O pé de Orlando pulou. Do acelerador bateu no freio. Rapidamente puxou o carro para o lado direito. Os pneus chiaram, riscando o asfalto. O Kaiser balançou sobre duas rodas, derrapou perigosamente, saiu da estrada. As rodas dianteiras afundaram na areia fofa. Orlando abriu a porta, saltou. Dez metros atrás de si, viu o vulto caído. Ficou parado, indeciso. Tê-lo-ía atropelado? O vulto mexeu-se, tentando levantar-se. Orlando ainda hesitou. Ir-se-ía embora ou daria socorro? Lembrou-se que não sentira nenhum choque no carro. Desistiu da fuga. Avançou cautelosamente para o vulto caído. Abaixou-se. Era uma mulher. Era branca. Erguia o braço, tentava agarrar alguma coisa com a mão, alguma coisa invisível e longe do seu alcance. Balbuciava com esforço:
-Socorro... socorro... ajude-me!

Orlando estremeceu ao tocá-la. Estava regelada e dura. Como um cadáver. Ela o segurou como se estivesse fazendo à coisa buscada:
-‘Eles’ querem matar-me, ajude-me!

A mulher agarrava-o com tanta força que suas unhas rasgavam-lhe as carnes. Ele olhou apreensivo para o coqueiral – donde ela surgira tentando perscrutar a escuridão:
-‘Eles’, quem?

Ela continuou a balbuciar. Quase um monólogo:
-Vêm aí1 Leve-me para o carro! Ajude-me! ‘Eles’ me matarão se me pegarem!

Carregou-a. Abriu a porta traseira do carro, estirou-a no assento. Ela ofegava. Bulia-se, inquieta murmurava palavras in inteligíveis. Orlando sentou-se ao volante. Ligou a máquina, engrenou a ré. O carro deu um pulo para trás, saiu da areia. Com outro salto precipitou-se para a frente. Orlando olhou para os lados. Ninguém aparecia através do coqueiral. Respirou algumas vezes, profundamente, o pé firme no acelerador. O carro chispava na estrada. Dois ou três automóveis cruzaram com o Kaiser. Orlando pensou em parar um deles e pedir para deixar a moça na cidade. Mas já o receio de complicações picava sua mente. Chegava, agora, retardada, a reação do susto passado. Era como se um frio intenso estivesse fazendo. Tremores dificilmente controlados corriam-lhe pela espinha. Seu estômago embrulhava-se. Dores lhe atazanavam as pernas. Tinha de parar e descansar. No primeiro atalho, meteu o Kaiser. Foi deslizando entre os coqueiros. Parou à beira-mar. Saiu para o ar livre. Mal pode agüentar-se nas pernas. Os joelhos bambeavam. Respirou fundo várias vezes. Depois puxou dum cigarro, acendeu-o. A camisa estava empapada de suor. Um suor frio, pegajoso, repelente. O ar, as passadas, o cigarro, fizeram-lhe bem. Voltou ao carro. A moça continuava deitada. Quieta. Parecia também refeita da emoção e do medo. Orlando ficou sem jeito. Não sabia o que dizer. Sentia apenas que tinha de dizer algumas coisas (...)”


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