Contista por vocação e
opção
Pedro
J. Bondaczuk
Aos trancos e
barrancos, enfrentando dificuldades de todos os tipos, principalmente de
carência de fontes informativas minimamente confiáveis, eis que me aproximo da
conclusão desta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos.
E olhem que são figuras consagradas, a maioria unanimidades no mundo das
letras, e, ainda assim... Foi uma tarefa de Hércules. Foram mais de sessenta
dias de ingentes pesquisas, de noites mal dormidas, de leitura e triagem de
dados, de análise e de redação – tudo isso, sem abrir mão de um único dos meus
diversos (e põe diversos nisso!) compromissos diários. Nem acredito que essa
empreitada está próxima do fim. O que fiz – embora não fosse essa a intenção
–foi escrever um livro, de mais de 400 páginas, tendo vocês, caríssimos
leitores, por testemunhas.
Mas... a série não
acabou. Resta tratar, ainda, de dois ficcionistas, dos quais (felizmente)
disponho de fartura de informações, por se tratarem de escritores cuja
qualidade e importância contam com a quase unanimidade de reconhecimento dos
especialistas e amantes de Literatura. O primeiro, de quem tratarei hoje, que é
o vigésimo segundo (na ordem de publicação) a se fazer presente na antologia de
contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que, reitero
pela enésima vez, tomei como referência para o resgate (de alguns) e
confirmação (de outros) mestres da ficção baianos – é Vasconcelos Maia. Ao
contrário da imensa maioria dos 21 anteriores, que se dedicaram, também, a
outros tantos gêneros, que não o da história curta (ficcionais ou não), ele
foi, antes e acima de tudo (por vocação e por opção), contista. Pelo menos os
livros que legou para a posteridade tiveram essa característica.
Carlos Vasconcelos Maia
nasceu em Santa Inês, município do Sudoeste baiano, em 20 de fevereiro de 1923.
Ao contrário de tantos outros conterrâneos, analisados nesta série, não
precisou emigrar para fazer carreira literária. Consagrou-se como magnífico
contista em sua Bahia natal, mais especificamente, em Salvador, onde exerceu,
entre outros cargos públicos, por certo tempo, a função de Secretário de
Turismo da cidade. Foi, ainda, assessor da Fundação Cultural do Estado da
Bahia, de 1983 até a data de seu falecimento, ocorrido em 14 de julho de 1988,
aos 65 anos de idade. Para se avaliar sua importância como contista, basta
informar que são raríssimas as antologias de contos que não tenham sua
participação. E não apenas as nacionais, mas também do Exterior. Várias de suas
histórias foram traduzidas e publicadas em coletâneas da Itália, França,
Alemanha, Bulgária, Rússia e Japão. Só isso já dá a exata dimensão da sua
qualidade literária.
Ao longo desta série de
estudos citei-o várias vezes como o criador do célebre “Cadernos da Bahia”,
revista de cultura e divulgação, que circulou por quatro anos (1948 a 1952) e
que revelou inúmeros escritores, que hoje são destaques literários nacionais.
Essa publicação foi tão importante, que é considerada, com justiça, como
movimento artístico e cultural. A importância de Vasconcelos Maia para a ficção
baiana extrapola, portanto, sua produção pessoal, embora seja esta a que de
fato conte para o analista.
Além das inúmeras
antologias nacionais e internacionais de que participou, o revolucionário
ficcionista (que conforme testemunho de seus amigos, era pessoa simples e
tímida até) foi, provavelmente, recordista de publicação de contos em revistas.
Publicou-os, por exemplo, entre outras, em “Ângulos”, “Revista da Bahia”, “A
Cigarra”, “Revista da Cultura da Bahia”, “Porto de Todos os Santos”, “América”,
“Exu”, “Revista da Academia Baiana de Letras” e vai por aí afora. Isso, sem
falar em, jornais, em especial dois: “A Tarde” e “Jornal da Bahia”. Aliás,
neste último, manteve, por seis anos consecutivos, a coluna “Dia sim, dia não”,
na qual publicou mais de 600 crônicas. Ressalte-se que esse foi o único gênero
a que ele se dedicou que não fosse o conto.
Dos livros de
Vasconcelos Maia, destaco: “Fora da vida” (1946), “Contos da Bahia” (1951),
“Feira de água de menino” (1951), “O cavalo e a rosa” (1955), “O primeiro
mistério” (1960), “O leque de Oxum” (1961), “História da gente da Bahia”
(1964), “ABC do Candomblé” (1978), “Cação de areia” (1986) e “Sol, terra, mar”
(2000, póstumo). O trabalho literário com que participa de “Histórias da Bahia”
tem o título de “Preto e branca”, cujo
início reproduzo abaixo, para que o leitor conheça pelo menos um pouco da sua
insuperável capacidade descritiva.
“Era
uma noite quente de verão. Sem lua, sem nuvem, sem vento. A cem quilômetros
corria o Kaiser pelo asfalto. Sua estabilidade era perfeita. Mas as molas
rangiam, o chassi balançava, a chaparia estremecia. Com o ouvido, Orlando
captava os defeitos do carro. Amava-o um bocado. Sentia que os proprietários
anteriores tivessem-no estragado tanto. O peso excessivo de passageiros e
bagagens, quatro corridas diárias ao aeroporto, haviam-no rebentado muito. ‘Um
dia’ – pensou Orlando – ‘boto esta catraia em forma’. Não era uma esperança a
toa. Conseguia boas férias e amealhava para o conserto geral.
Cogitando
nas necessidades do velho Kaiser, vinha Orlando, chofer de praça no Largo do
Teatro. Mas apreciava também o que o amigo tinha de bom e positivo. O motor,
por exemplo. Seu ronco era macio e uniforme. A estrada plana e deserta
oferecia-se à sua voragem. O coqueiral, do lado esquerdo, passava chispante. Do
lado direito, estendia-se a praia. Selvagem, solitária, de areia tão branca que
brilhava. As ondas nela se deitavam, mansas e sem força.
Apesar
de todos os vidros descidos, apesar do carro estar puxando cem quilômetros, Orlando
não sentia frescor na brisa que lhe varria o rosto. Embora úmida e salitrosa,
era quente. Mesmo assim a viagem não o desagradava. Gostava de correr sozinho
no seu velho Kaiser. Sem passageiros, soltava-o na estrada. Era como nos tempos
de menino, em que agregado numa fazenda de gado, cavalgava seu campeiro. Carro
e cavalo não lhe faziam diferença. Amava o carro como amara seu cavalo. Como se
ambos tivessem igualmente o mesmo sentimento recíproco de fidelidade.
A
estrada fez suave curva. As luzes de Itapoã surgiram, distantes, sobre o mar.
Orlando premiu o pé no acelerador. Sem queixa, o motor rugiu, foi a cento e
vinte. E, de súbito, como uma estrela cadente, a sombra saltou na estrada. A
visão foi imprecisa. Quase uma percepção. O pé de Orlando pulou. Do acelerador
bateu no freio. Rapidamente puxou o carro para o lado direito. Os pneus
chiaram, riscando o asfalto. O Kaiser balançou sobre duas rodas, derrapou
perigosamente, saiu da estrada. As rodas dianteiras afundaram na areia fofa.
Orlando abriu a porta, saltou. Dez metros atrás de si, viu o vulto caído. Ficou
parado, indeciso. Tê-lo-ía atropelado? O vulto mexeu-se, tentando levantar-se.
Orlando ainda hesitou. Ir-se-ía embora ou daria socorro? Lembrou-se que não
sentira nenhum choque no carro. Desistiu da fuga. Avançou cautelosamente para o
vulto caído. Abaixou-se. Era uma mulher. Era branca. Erguia o braço, tentava
agarrar alguma coisa com a mão, alguma coisa invisível e longe do seu alcance.
Balbuciava com esforço:
-Socorro...
socorro... ajude-me!
Orlando
estremeceu ao tocá-la. Estava regelada e dura. Como um cadáver. Ela o segurou
como se estivesse fazendo à coisa buscada:
-‘Eles’
querem matar-me, ajude-me!
A
mulher agarrava-o com tanta força que suas unhas rasgavam-lhe as carnes. Ele
olhou apreensivo para o coqueiral – donde ela surgira tentando perscrutar a
escuridão:
-‘Eles’,
quem?
Ela
continuou a balbuciar. Quase um monólogo:
-Vêm
aí1 Leve-me para o carro! Ajude-me! ‘Eles’ me matarão se me pegarem!
Carregou-a.
Abriu a porta traseira do carro, estirou-a no assento. Ela ofegava. Bulia-se,
inquieta murmurava palavras in inteligíveis. Orlando sentou-se ao volante.
Ligou a máquina, engrenou a ré. O carro deu um pulo para trás, saiu da areia.
Com outro salto precipitou-se para a frente. Orlando olhou para os lados.
Ninguém aparecia através do coqueiral. Respirou algumas vezes, profundamente, o
pé firme no acelerador. O carro chispava na estrada. Dois ou três automóveis
cruzaram com o Kaiser. Orlando pensou em parar um deles e pedir para deixar a
moça na cidade. Mas já o receio de complicações picava sua mente. Chegava,
agora, retardada, a reação do susto passado. Era como se um frio intenso
estivesse fazendo. Tremores dificilmente controlados corriam-lhe pela espinha.
Seu estômago embrulhava-se. Dores lhe atazanavam as pernas. Tinha de parar e
descansar. No primeiro atalho, meteu o Kaiser. Foi deslizando entre os
coqueiros. Parou à beira-mar. Saiu para o ar livre. Mal pode agüentar-se nas
pernas. Os joelhos bambeavam. Respirou fundo várias vezes. Depois puxou dum
cigarro, acendeu-o. A camisa estava empapada de suor. Um suor frio, pegajoso,
repelente. O ar, as passadas, o cigarro, fizeram-lhe bem. Voltou ao carro. A
moça continuava deitada. Quieta. Parecia também refeita da emoção e do medo.
Orlando ficou sem jeito. Não sabia o que dizer. Sentia apenas que tinha de
dizer algumas coisas (...)”
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