Paradigma da ficção
nacional
Pedro
J. Bondaczuk
O vigésimo terceiro
(por ordem de publicação) escritor presente na antologia de contos “Histórias
da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que tomei como referência para
esta série de estudos, que ora encerro, sobre 23 dos principais ficcionistas baianos
– é o mais ilustre de todos (inclusive mais do que Adonias Filho, Jorge Amado,
João Ubaldo Ribeiro, Noênio Spinola e vai por aí afora). Refiro-me a Francisco
Xavier Ferreira Marques. Ele pode (e deve, porquanto de fato foi) ser
considerado paradigma, modelo, referencial de todos os outros 22 escritores
estudados.
Sem nenhum exagero, é
comparável a Machado de Assis, de quem foi contemporâneo. Quando a maioria dos
ficcionistas que o antecederam nessa antologia sequer havia nascido, esse
fantástico homem de letras já era eleito para ocupar a cadeira de número 28 da
Academia Brasileira de Letras, para onde foi guindado em 24 de julho de 1919.
Foi, como afirmei, contemporâneo de Machado de Assis. Todavia, não chegou a ser
companheiro de Academia do “Bruxo do Cosme Velho” pois, quando foi eleito para
a ABL, seu ilustre fundador já havia morrido há treze anos;
Xavier Marques é o
único ficcionista a ter conto incluído em “Histórias da Bahia” depois de morto.
E a história selecionada dele é, disparado, a mais extensa de todas, com
extensão característica de uma novela, preenchendo, praticamente, um quarto das
páginas de toda a coletânea. Apesar de tudo isso, será um dos escritores sobre
quem menos escreverei. Por que? Porque tantos já escreveram tanto a seu respeito
(sobre sua vida e sua obra) que não tenho absolutamente nada de novo a
acrescentar.
Trata-se de um dos
escritores brasileiros mais estudados da Literatura nacional, dada sua inegável
e decisiva importância literária, notadamente no que diz respeito à ficção.
Apenas para que o leitor tenha uma idéia, localizei, sem fazer qualquer
esforço, doze teses acadêmicas tratando dele, tanto de graduação, quanto de
pós-graduação em Letras de várias universidades Brasil afora. O que eu poderia
acrescentar de novo, que alguém, muito mais habilitado do que eu, já não tenha
escrito? Nada! Rigorosamente nada!
Para não dizerem,
porém, que não escrevi sequer o “be-a-bá” de uma análise a seu propósito,
forneço, a quem não o conheça (e, neste país de memória tão curta, há milhões e
milhões nesta condição), trago-lhes algumas informações básicas, elementares,
dessas que podem ser obtidas, com a maior facilidade, em qualquer enciclopédia,
mesmo as nem tanto completas, sobre sua vida e sua obra.
Francisco Xavier
Ferreira Marques nasceu em Itaparica, em 3 de dezembro de 1861. Morreu, em
Salvador, pouco menos de três meses antes de eu nascer, ou seja, em 30 de
outubro de 1942. Não foi, portanto, meu contemporâneo. Publicou livros em
praticamente todos os gêneros literários (a exceção foi o teatro), e não apenas
de ficção. Tenho alguns deles em minha vasta e caótica biblioteca, notadamente
o único de contos que ele publicou, além de quatro dos seus nove romances.
Gostaria, óbvio, de ter todos os 24 volumes publicados, mas... minha “verba”
não é tão generosa a ponto de me permitir a aquisição de tudo o que me
interessa e que desejo. Aliás, muito pelo contrário (embora, na comparação com
a imensa maioria das pessoas no País, ela possa ser considerada até das mais
altas. Mas... deixa pra lá!).
Seus primeiro e
terceiro livros foram de poesias, respectivamente “Terras e variações” (1884) e
“Insulares” (1896). Já o segundo, foi o romance “Uma família baiana” (1888).
Publicou, ainda, nesse gênero, “Boto e companhia” (1897), “Jana e Joel” (1899),
“Pindorama” (1900), “Holocausto” (1900), “O sargento Pedro” (1910), “A boa
madrasta” (1919), “O feiticeiro” (1922) e “As voltas da estrada” (1930). De
novelas, foram quatro as publicadas: “Maria Rosa”, “O arpoador” “A noiva do
golfinho” e “Terras mortas”. Publicou um único (e marcante) livro de contos,
como afirmei, “A cidade encantada” (1919). Escreveu, ainda, uma biografia,
“Vida de Castro Alves” (1911). O restante de sua obra constituiu-se de ensaios,
gênero em que mostrou raríssima familiaridade, em se levando em conta que sua
especialidade era a ficção, além do talento usual, claro.
Trago, caríssimo
leitor, para a sua apreciação, o trecho final do conto “Maria Rosa”, com que
Xavier Marques foi “homenageado” pelos organizadores da antologia “Histórias da
Bahia”. Trata-se, como destaquei antes, de narrativa extensíssima, mas dessas
de tirarem o fôlego, que a gente lê sem perder o interesse da primeira à última
linha. Caso vocês tenham a oportunidade de acesso a essa história, é leitura que
recomendo (e nem seria preciso fazê-lo, pois é uma produção que se impõe por si
só, por sua qualidade). Acompanhem, pois, abaixo, a forma como esse paradigma
não só dos ficcionistas baianos, mas de todo o País, encerra esse modelar
conto.
“
(...) Pela varanda, pelo terreiro, desassossegado, espiando aqui8, acolá,
claudicava o preto velho à procura do filho.
“Cairia
bêbado no mato?” pensou e deu volta à casa.
Tornando
à varanda, perguntou por ele a um tunante, que lhe respondeu:
-Deixe-o
lá curtir...
Não
sossegou. Partiu a coxear pela vereda fora, e com pressentimentos chegou aos
estendais, onde pisou num chapéu e viu lascado um varal...
Sentiu
um calafrio no coração e arrastando-se até à beira do apicum, apurou o ouvido,
olhou em roda e ao longe.
A
lua saiu de entre nuvens e mostrou-lhe a assombrosa verdade...
Tremendo,
gritou, gritou loucamente, mas sem voz. Deitou a correr aos pulinhos, para a
festa. Tropeçava, caía, levantava-se e tornava a gritar:
-Socorro!...
Socorro!...
Só
a caixa respondia, abafando-lhe os gritos com o seu rufar precipitado, infrene
e cruel. ‘São Gonçalinho!... São Gonçalinho!...’
Ele
não cessou de gritar:
-Socorro!...
Quem acode?...
Estava
a meio da vereda. Acudiu-lhe um homem desconhecido, que sem nada saber, foi
levando o alarma, às carreiras, até o terreiro da casa.
-É
briga! é briga... – denunciaram em coro os da varanda.
Cessou
o estrondo da caixa. Saíram os homens e mulheres, procurando Lauriano e o fulo.
-São
eles – disse um. – Inda agora rixaram.
Em
pelotões abalaram todos para o apicum, as peixeiras bradando como para suster
os golpes que imaginavam, sem saber de que armas.
Pressentiam
alguma coisa medonha; tinham alucinações, visões funestas, de sangue.
Barafustando
pelo sítio, gritaram, gritaram, gritaram com mais desatino, enxotando a Morte
que as apavoravam como a sombra de um avejão sinistro.
Afinal
pararam, dispersaram-se e arquejantes procuravam, quando uma voz rompeu,
guaiada, lacerada de horror: ‘Ai que desgraça’, e todos acudiram.
No
meio do espraiado, a todo o clarão da lua, estava o corpo de Zeferino, imóvel,
deitado de bruços, num charco de sangue que lhe vazava do crânio.
Aqui
e ali escavações, sulcos, rastos profundos para onde o sangue escorria,
empoçando.
A
seu lado – estranha piedade do acaso! – dois remos caídos formavam cruz com as
hastes.
-‘Ai
que desgraça!...’ – gemiam as mulheres.
E
seus lamentos por algum tempo rossoaram nas grotas do mangue, pelo espaço claro
e pelo mar em fora...
Depois
disso o corpo carregado pelos homens ia deixando na areia prateada um rastilho
negro, que as peixeiras foram seguindo, tristes e lentamente, até os estendais
das redes, à orla da campina, por onde se sumiram...”.
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