Quando o Estado se vinga
Pedro J. Bondaczuk
A pena de morte é um dos temas mais polêmicos, e que
despertam mais paixões, em todo o mundo quando vem à baila, tanto em conversas
informais, quanto em conferências, debates, artigos de jornais etc.etc.etc. E a
controvérsia se dá não apenas entre juristas, sociólogos e outros intelectuais,
mas, sobretudo, entre pessoas do povo. Há uma infinidade de livros ora
defendendo, ora condenando essa prática. Entendo, pois, que seja assunto
pertinente a ser tratado em um espaço dedicado à Literatura. Alguns defendem,
irados, esse tipo de punição, argumentando que determinados delinqüentes são
irrecuperáveis e nada têm a oferecer à sociedade. De fato há quem nunca se
recupere e que não traga benefício algum para ninguém. Mas... Outros, porém,
opõem-se, tenazmente, à medida, classificando-a de “vingança oficializada”. E
no fundo, no fundo é, de fato, isso.
Sempre que ocorre algum crime,
com requintes de crueldade e grande repercussão na mídia, como, para citar
apenas o primeiro exemplo que me vem à memória, o cometido alguns meses atrás,
por um jovem, na cidade de São Paulo, no qual um garotinho boliviano de seis
anos de idade, que aniversariava na ocasião, foi fria e estupidamente morto,
com um tiro na cabeça, apenas porque, assustado, não parava de chorar, sem que
tivesse a mais remota chance de defesa, o assunto sobre a pena de morte vem à
baila. Pronunciamentos passionais, então, são feitos, e em profusão, defendendo
a medida, mesmo por pessoas esclarecidas e ponderadas.
Desde tempos imemoriais, essa
prática vem sendo adotada para punir os que suprimem vidas a quaisquer
pretextos. E as execuções são feitas das mais variadas maneiras, indo do
apedrejamento, do linchamento e da forca – as formas mais comuns adotadas em passado
ainda recente – aos pelotões de fuzilamento, câmaras de gás, cadeiras elétricas
e injeções letais, nos últimos tempos. Houve época em que execuções se
constituíam em acontecimentos sociais, em uma espécie de mórbida diversão.
Reuniam milhares de pessoas em praças públicas, onde eram realizadas e a
maioria aceitava, como a coisa mais natural do mundo, a supressão de vidas dos
condenados.
Num determinado estágio da
civilização, cabia aos parentes das vítimas de assassinato punirem os
criminosos. Eram as propaladas “dívidas de sangue”, que tinham,
necessariamente, que ser resgatadas. Coitado, por exemplo, do primogênito que
deixasse de vingar a morte do pai! Ou do irmão que não vingasse a morte de
irmão! Quem se negasse a pagar esse cruel débito macabro, ou por ser avesso à
violência, ou por reconhecer justiça na execução do parente (quando este a
merecia), era segregado do convívio social. Passava por humilhações inomináveis
e era rotulado de covarde, pecha que carregava pelo resto da vida. E tal designação
era considerada a maior das ofensas que se poderia fazer a alguém.
Essas dívidas de sangue deram
causa a históricas guerras entre famílias, intermináveis, algumas com até mais
de um século de duração. Uma das mais célebres, nos Estados Unidos, por exemplo,
foi a que opôs os Martins e os McCoys. E, na cidade pernambucana de Exu, duas
famílias mantiveram disputa desse tipo por gerações, sustentando longa e
inconciliável inimizade, que fez dezenas de vítimas, dos dois lados.
A pena de morte nada mais é do
que o Estado assumindo a dívida de sangue. Não passa, portanto, de vingança da
sociedade contra infratores. Ou seja, aquele que condena o homicídio (no caso o
Estado, na figura de um preposto, o juiz), comete o mesmo delito que proíbe aos
outros. Isso, no mínimo, é aberrante contradição! Um erro jamais justifica
outro, seja quem for que o cometa ou qual seja a razão. Morte é morte, tanto
faz se praticada mediante tocaia por algum malfeitor, com o objetivo de roubar
ou estuprar a vítima, ou se causada por gás cianureto, por injeção de produto
químico letal ou por tiro de fuzil de algum carrasco a serviço do Estado.
Aliás, o extermínio autorizado e
patrocinado pela sociedade, do ponto de vista moral, é pior do que o dos
homicidas tradicionais que, certos ou errados, têm lá (ou pelo menos acreditam
ter) seus motivos. Já o executor de uma sentença de morte não tem o mínimo
interesse pessoal no condenado, ao qual sequer conhece. Mata fria, impiedosa e
mecanicamente um ser humano, como se estivesse matando um animal qualquer.
Ademais, não foi um e nem foram apenas dois os erros judiciais cometidos por
tribunais, atribuindo culpas a pessoas absolutamente inocentes, em todos os
tempos e lugares. Essas aberrações jurídicas somam-se aos milhares, quiçá aos
milhões e penalizam, quase que somente os pobres, os humildes, os iletrados que
não têm como pagar bons advogados.
Muitos desses erros – embora não
tantos como gostaríamos – são reparados a tempo, mas somente quando a pena
imposta ao injustiçado é a da privação da liberdade. Em raros casos, os
condenados à morte livram-se da execução, pela descoberta, localização e
captura dos verdadeiros culpados. Mas esta não é, e nunca foi, a regra, senão
uma exceção. Mesmo no caso de prisões indevidas, a reparação nunca é completa.
Que dinheiro paga uma reputação manchada, as humilhações e os sofrimentos de
quem é encarcerado sem dever? E quando o réu é condenado à morte, executado e
depois se descobre que era inocente? Como reparar essa monstruosidade? Como
devolver a vida ao executado indevidamente? Quem deve ser responsabilizado por
tamanho erro judiciário? O juiz? O promotor? As testemunhas? O advogado? O
júri? A polícia? O Estado?
Se for este último, a quem cabe a
responsabilidade? Ao presidente da República? Ao governador? Ao Supremo? Todos,
certamente, vão saber encontrar subterfúgios e o erro vai passar batido.
Quantos, por exemplo, dos mais de um mil executados no ano passado, em 40
países onde vigora a pena de morte, não eram inocentes? Ninguém sabe! E quais
são os responsáveis por esses erros? Quem os punirá? Como? Ficam as incômodas
perguntas no ar... E fica o básico preceito bíblico, um dos Dez Mandamentos:
não matarás! E em hipótese alguma, acrescente-se! Que se achem, pois, outras
punições, que não a da “vingança do Estado”, para punir os monstros
sanguinários e cruéis que, comprovadamente, as mereçam.
No comments:
Post a Comment