Mais de meio século de
criatividade
Pedro
J. Bondaczuk
O conto com que Noênio
Spinola participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de
Janeiro, 1963) – que adotei como referência para esta série de estudos sobre 23
dos principais ficcionistas baianos – é da sua fase inicial de escritor. Não há
referências sobre onde foi publicado originalmente. Tem, no entanto, no mínimo,
meio século de escrito. Afinal, a referida antologia foi lançada em 1963. Há,
portanto, 50 anos!!! Suspeito que o conto, cujo título é “Margaridas para a
bem-amada”, tenha sido extraído do livro “Reunião”, datado de 1961, que Noênio
Spinola participou na companhia de João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho e David
Salles. Na época, o quarteto era adolescente (ou quase), considerado sumamente
promissor, mas nada além disso.
Notável foi o “faro” do
organizador de “Histórias da Bahia”. Todos os 23 escritores, que tiveram seus
contos selecionados (e publicados) satisfizeram as expectativas depositadas
neles e, uns mais e outros menos, todos se consagraram como notáveis
ficcionistas, hoje tidos (com justiça) como referências na Literatura não
somente regional, no caso a baiana, mas nacional (e vários deles,
internacional). Convenhamos, margem tão alta de acerto, é coisa das mais raras.
É como ganhar sozinho o primeiro prêmio da loteria, ou da megassena ou de algo
que o valha. Vá ter intuição e bom gosto assim na Cochinchina!!!
No caso de Noênio
Spinola, os maiores sucessos de sua vitoriosa carreira se deram (e em todas as
múltiplas atividades que exerceu, e com exemplar competência e brilho) nos
cinqüenta anos posteriores à publicação da antologia. Sua bibliografia é tão
extensa, vasta e eclética, que para relacioná-la toda teríamos que dispor de
muito mais espaço do que dispomos. Contudo, não posso deixar de mencionar,
mesmo que só de passagem, livros como o romance “Mariana Adeus”, ou como “Dante
Aligheri visita a comédia paulistana”, ou como os não propriamente ficcionais,
mas importantíssimos, como “Deuses & poder: 2.500 anos de lendas, mitos,
símbolos”, “O futuro do futuro”, “Caras pintadas”, “Como exportar e dialogar
melhor”, “Comodities o preço do futuro”, “Os pactos sociais na Espanha”, “As
portas da Ásia” e vai por aí afora.
Para que o leitor tenha
uma idéia de como foi o “começo” da vitoriosa e invejável trajetória literária
desse escritor-jurista-jornalista ou jornalista-jurista-escritor ou seja lá na
ordem que for, transcrevo o trecho final do seu conto “Margaridas para a
bem-amada” publicado, reitero, há meio século (é muito tempo!) em “Histórias da
Bahia”.
“(...)
Possuía um cabelo castanho, liso, era evidente que não se cuidava muito. Ela
está ali – pensou – acaba de voltar do lanche, cruza as pernas e a gente sabe
que comeu um sanduíche de mortadela com um refrigerante. Tem um gosto
estragado. Voltou a se ocupar das notas fiscais e de resto sabia que era tarde,
que não ia dar conta do serviço na hora, então o chefe viria com aquela cara de
nervos à mostra, mas não podia fazer nada mesmo. Sabia o que era um empregado
com a estabilidade legal e isso tem influência. Possuía um cabelo castanho,
liso, porque não se aproximar como um bailarino indo, movendo ritmadamente,
compassadamente a cabeça e as mãos e lhe sussurrar: ouve, querida minha... –
por que? Ora, exclamou, isso são os termos próprios para esses tempos. E era
tão preciso encontrar logo a fórmula secreta. Eu vivo sonhando com colinas
floridas e pássaros encantados e donzelas misteriosas, podem sorrir. O chefe
gritou da sala vizinha ‘senhor Serra’ e ele pensou – é lamentável que me
interrompam um sonho, e justamente quando eu principiava a imaginar grinaldas –
olhou com um olhar comprido a carteira vazia de dona Terezinha e atravessou a
sala cantarolando baixo.
Se
aproxima da janela, pisa uma ponta de cigarro e sabe agora que o sujeito está
aborrecido, mas é isso mesmo. Atendeu o chamado do chefe e lhe levou o que
tinha terminado do serviço com uma cara muito cínica. ‘Só preparei isso até
agora, o senhor sabe, eu ando muito esgotado...’ Entregou os papeis e ficou
próximo à janela olhando para longe, para a cidade, tinha tirado o dia para
estar assim. Dona Terezinha se aproximou, usava um vestido branco – como osd
anjos se vestem de branco – e um delicado sapato de saltos altos, o que lhe
dava um ar de figurinha de porcelana. Sua voz era tranqüila, ela estava a seu
lado e havia um tempo enorme não o chamavam ‘Amaro’ (no fundo, não se
surpreendia tanto assim) então aproveitou para lhe dizer ‘e eu espero você há
tanto tempo...’, fez uma pausa, como se estivesse cansado, continuou: ‘todavia
não trasgo margaridas; é difícil conseguir margaridas para a Bem-Amada, mas
você sabe, meu anjo, nesse pequeno canto da terra a gente balança as mãos e
descobre que não tem nada muito tarde, a gente não quer chegar assim, mas é
difícil ser como os cavalheiros antigos, porque mataram todos’. Os seus ossos
chocalham debaixo da terra e se pensa que são os meninos que estão brincando no
quintal. Agora, eu penso que também destruíram as Colinas Floridas, mas não sei
ao certo. – Tirou um anel de compromisso do bolso e pôs no dedo dela com um
sorriso amarelo. Aproximaram asd cabeças e ele lhe revelou esse segredo ‘a
gente pode sonhar agora com essas coisas domésticas que anunciam nos jornais,
não é verdade’ Mas não fale isso alto, existem alaridos. Mas pelo amor de Deus
– voltara a fitá-la atentamente – pelo amor de Deus não sorria assim. Olhe,
isso me dá vontade de gritar e lhe arrancar esse sorriso do rosto como um
esparadrapo; minha Bem-Amada deve ser feita de lendas e eu atravessei países
para chegar até você’. Dona Terezinha, vestida de branco como os anjos se
vestem de branco, puxou um lencinho e enxugou uma lágrima. No entanto, que
espécie de sorriso eu devo ter? perguntou. Ele disse ‘não sei...’ e ficou
confuso, querendo acrescentar ‘deve sorrir assim mesmo; porque iria sorrir como
as fadas sorriem? E, afinal, eu também não tenho nenhuma margarida, quando é
tão triste aparecer assim ante a Bem-Amada’. Suspiraram juntos e sorriram”
Acompánhe-me pelo twitter: @bondaczuk.
No comments:
Post a Comment