Wednesday, March 05, 2014

Mais de meio século de criatividade

Pedro J. Bondaczuk

O conto com que Noênio Spinola participa da antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que adotei como referência para esta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – é da sua fase inicial de escritor. Não há referências sobre onde foi publicado originalmente. Tem, no entanto, no mínimo, meio século de escrito. Afinal, a referida antologia foi lançada em 1963. Há, portanto, 50 anos!!! Suspeito que o conto, cujo título é “Margaridas para a bem-amada”, tenha sido extraído do livro “Reunião”, datado de 1961, que Noênio Spinola participou na companhia de João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho e David Salles. Na época, o quarteto era adolescente (ou quase), considerado sumamente promissor, mas nada além disso.

Notável foi o “faro” do organizador de “Histórias da Bahia”. Todos os 23 escritores, que tiveram seus contos selecionados (e publicados) satisfizeram as expectativas depositadas neles e, uns mais e outros menos, todos se consagraram como notáveis ficcionistas, hoje tidos (com justiça) como referências na Literatura não somente regional, no caso a baiana, mas nacional (e vários deles, internacional). Convenhamos, margem tão alta de acerto, é coisa das mais raras. É como ganhar sozinho o primeiro prêmio da loteria, ou da megassena ou de algo que o valha. Vá ter intuição e bom gosto assim na Cochinchina!!!

No caso de Noênio Spinola, os maiores sucessos de sua vitoriosa carreira se deram (e em todas as múltiplas atividades que exerceu, e com exemplar competência e brilho) nos cinqüenta anos posteriores à publicação da antologia. Sua bibliografia é tão extensa, vasta e eclética, que para relacioná-la toda teríamos que dispor de muito mais espaço do que dispomos. Contudo, não posso deixar de mencionar, mesmo que só de passagem, livros como o romance “Mariana Adeus”, ou como “Dante Aligheri visita a comédia paulistana”, ou como os não propriamente ficcionais, mas importantíssimos, como “Deuses & poder: 2.500 anos de lendas, mitos, símbolos”, “O futuro do futuro”, “Caras pintadas”, “Como exportar e dialogar melhor”, “Comodities o preço do futuro”, “Os pactos sociais na Espanha”, “As portas da Ásia” e vai por aí afora.

Para que o leitor tenha uma idéia de como foi o “começo” da vitoriosa e invejável trajetória literária desse escritor-jurista-jornalista ou jornalista-jurista-escritor ou seja lá na ordem que for, transcrevo o trecho final do seu conto “Margaridas para a bem-amada” publicado, reitero, há meio século (é muito tempo!) em “Histórias da Bahia”.    

“(...) Possuía um cabelo castanho, liso, era evidente que não se cuidava muito. Ela está ali – pensou – acaba de voltar do lanche, cruza as pernas e a gente sabe que comeu um sanduíche de mortadela com um refrigerante. Tem um gosto estragado. Voltou a se ocupar das notas fiscais e de resto sabia que era tarde, que não ia dar conta do serviço na hora, então o chefe viria com aquela cara de nervos à mostra, mas não podia fazer nada mesmo. Sabia o que era um empregado com a estabilidade legal e isso tem influência. Possuía um cabelo castanho, liso, porque não se aproximar como um bailarino indo, movendo ritmadamente, compassadamente a cabeça e as mãos e lhe sussurrar: ouve, querida minha... – por que? Ora, exclamou, isso são os termos próprios para esses tempos. E era tão preciso encontrar logo a fórmula secreta. Eu vivo sonhando com colinas floridas e pássaros encantados e donzelas misteriosas, podem sorrir. O chefe gritou da sala vizinha ‘senhor Serra’ e ele pensou – é lamentável que me interrompam um sonho, e justamente quando eu principiava a imaginar grinaldas – olhou com um olhar comprido a carteira vazia de dona Terezinha e atravessou a sala cantarolando baixo.

Se aproxima da janela, pisa uma ponta de cigarro e sabe agora que o sujeito está aborrecido, mas é isso mesmo. Atendeu o chamado do chefe e lhe levou o que tinha terminado do serviço com uma cara muito cínica. ‘Só preparei isso até agora, o senhor sabe, eu ando muito esgotado...’ Entregou os papeis e ficou próximo à janela olhando para longe, para a cidade, tinha tirado o dia para estar assim. Dona Terezinha se aproximou, usava um vestido branco – como osd anjos se vestem de branco – e um delicado sapato de saltos altos, o que lhe dava um ar de figurinha de porcelana. Sua voz era tranqüila, ela estava a seu lado e havia um tempo enorme não o chamavam ‘Amaro’ (no fundo, não se surpreendia tanto assim) então aproveitou para lhe dizer ‘e eu espero você há tanto tempo...’, fez uma pausa, como se estivesse cansado, continuou: ‘todavia não trasgo margaridas; é difícil conseguir margaridas para a Bem-Amada, mas você sabe, meu anjo, nesse pequeno canto da terra a gente balança as mãos e descobre que não tem nada muito tarde, a gente não quer chegar assim, mas é difícil ser como os cavalheiros antigos, porque mataram todos’. Os seus ossos chocalham debaixo da terra e se pensa que são os meninos que estão brincando no quintal. Agora, eu penso que também destruíram as Colinas Floridas, mas não sei ao certo. – Tirou um anel de compromisso do bolso e pôs no dedo dela com um sorriso amarelo. Aproximaram asd cabeças e ele lhe revelou esse segredo ‘a gente pode sonhar agora com essas coisas domésticas que anunciam nos jornais, não é verdade’ Mas não fale isso alto, existem alaridos. Mas pelo amor de Deus – voltara a fitá-la atentamente – pelo amor de Deus não sorria assim. Olhe, isso me dá vontade de gritar e lhe arrancar esse sorriso do rosto como um esparadrapo; minha Bem-Amada deve ser feita de lendas e eu atravessei países para chegar até você’. Dona Terezinha, vestida de branco como os anjos se vestem de branco, puxou um lencinho e enxugou uma lágrima. No entanto, que espécie de sorriso eu devo ter? perguntou. Ele disse ‘não sei...’ e ficou confuso, querendo acrescentar ‘deve sorrir assim mesmo; porque iria sorrir como as fadas sorriem? E, afinal, eu também não tenho nenhuma margarida, quando é tão triste aparecer assim ante a Bem-Amada’. Suspiraram juntos e sorriram”

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