Friday, March 07, 2014

Mais que político, escritor

Pedro J. Bondaczuk

O décimo nono contista (por ordem de publicação) presente na antologia de contos “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que tomei como referência para esta série de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – é Ruy Santos. Ele militou por tanto tempo na política, inclusive em âmbito nacional, que poucas pessoas se lembram hoje em dia, passados vinte e oito anos da sua morte (ocorrida em 25 de maio de 1985), que ele também foi escritor. Mas foi. E dos melhores que a Bahia já produziu para a Literatura brasileira. E olhem que esse Estado tem tradição de qualidade, sobretudo na ficção (como demonstrei, de sobejo, nesta série de estudos)!!! 

Ruy Santos, que nasceu na cidade de Casa Nova, em pleno sertão baiano, em 15 de fevereiro de 1902, não foi apenas atuante político e nem só escritor. Foi médico, jornalista (editor-chefe dos jornais “Estado da Bahia” e “Diário de Notícias”), além de professor, tanto de Medicina, quanto da Escola Normal e da Faculdade de Filosofia do seu Estado. Pouca gente, porém, se lembra dessa sua destacada atuação na vida pública. Restou, para a posteridade, apenas, um monte de referências sobre sua carreira política. Uma pena!

Mas, pudera! Ruy Santos foi, por exemplo, prefeito da cidadezinha de Itapira de Itacaré (atual Ubaitaba), que ajudou a emancipar, quando clinicava naquela localidade do sertão baiano. Foi, por vinte anos (alternados), deputado federal, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Brasília. Seus mandatos foram, respectivamente, de 1946 a 1959 e de 1963 a 1970. Na sequência, no ano seguinte, em 1971, elegeu-se senador pela Bahia, função que exerceu até 1978, sem completar o mandato de oito anos. Por que? Porque se indispôs com o “cacique político” do seu Estado, o governador Antonio Carlos Magalhães, e renunciou ao um ano que faltava para completar o período legislativo normal de um senador (recorde-se que o País estava, então, no auge da ditadura militar).

Para mim, porém, nenhuma dessas funções que exerceu é tão relevante, como sua condição de escritor. E que escritor! Ruy Santos foi o mais legítimo representante da ficção regional, no seu caso, da área do Rio São Francisco. Publicou obras de ficção realistas, verossímeis, humanas e, por isso, monumentais. Cito como exemplos o romance “Água barrenta” (1954, José Olympio Editora) e “Teixeira Moleque” (1961, pela mesma editora). Mas há tantos e tantos outros livros de altíssima qualidade literária seus, incluindo novelas e contos. Grande memorialista, Ruy Santos publicou cinco livros de memórias. Mas, não deixou de registrar suas opiniões e observações políticas, publicando pelo menos quatro volumes sobre o tema. Fez, também, incursão pelo teatro, e publicou o enredo de uma peça de grande aceitação e sucesso.

Mas foi na ficção regional que, no meu entender, brilhou com mais intensidade. Quando tinha, por exemplo, apenas quarenta dias de vida, seus pais foram forçados a deixar, correndo, a casa em que moravam, invadida pelas águas do Rio São Francisco, que a levaram de roldão, em uma de suas tantas e freqüentes cheias. Isso calou fundo em seu subconsciente. Embora bebê na ocasião, essa dramática inundação, literalmente, inundou sua vida. Ele mesmo confessou isso, em entrevista, ao afirmar: “Não sairia ele (o Rio São Francisco) da minha cabeça e do meu coração”. Atesta-o a excelência do romance “Água barrenta”. Já em “Teixeira Moleque”, teve a oportunidade de relatar, ficcionalmente, a dura experiência de um médico no sertão baiano, carente de todo e qualquer recurso, tendo que fazer das tripas coração para salvar vidas, aquelas em que isso era possível.

O conto com que participou de “Histórias da Bahia”, intitulado “Manezim da Umburana”, traz à baila outro drama bastante comum do sertão nordestino: a seca. Na época em que foi selecionado para integrar a antologia, era deputado federal e já atuando em Brasília. Não há referência de onde essa história foi extraída. Todavia, é de arrepiar, pelo realismo e pelo poder descritivo, nu e cru, tão competente, que quem a lê, visualiza, de imediato, com a maior facilidade, cenário e personagens do enredo que, neste caso, trata da dura sina de uma família de retirantes. Reproduzo, para seu conhecimento, paciente leitor, o trecho final desse agudo drama de Manezim, Das Vige e filhos, que chega a causar mal estar, de tão realista e cru que é. Confira: 

“(...) Levantaram-se. Nem se benzeram. Esqueciam-se de Deus. Deus também parecia ter se esquecido deles. Nenhum canto de galo, longe que fosse. Nem trinado de passarinho, nem resfolegar de cavalo no pasto, nem chacoalhar de cascavel. De vivos apenas eles. E que vida”

Num saco remendado já estavam arrumados os brugunços da viagem; no alforje uns restos de coisas que comer, um caneco, a cafeteira de flandre. Manezim calculou no bornal o que sobrava de água. E a viagem naquele sol danado tinha que fazer sede nos filhos. Acordou os meninos. Comeram uns tacos de carne com farinha. Das Vige deu o peito vazio a Doroteu.

Enquanto a mulher iludia o estômago do filho com o peito murcho, Manezim botou para dentro de casa o eu tinha de guardar. Sua sela de vaqueiro. Uma cangalha já sem enchimento. Um pote velho. Umas peias endurecidas pelo desuso. Pedaços de correia de arriar bezerro. Cambão careta.

O alpendre ficou limpo. Desceu então ao riacho a ver se o olho d’água aflorava. Correu os olhos por tudo. Galhos secos de umbuzeiro e umburana apontavam para o céu já meio claro. O chão tinha ainda um resto da quentura do sol de véspera. Voltou para casa.
-Vamo, das Vige... Enquanto o sol não sai... Daqui pra arcançá a casa do véio Libório ele já ta arto...

A mulher jogou ainda no saco as redes e as cobertas mijadas dos filhos. Vestiu-lhes as camisetas duras de sujo.
-Pudemo ir...

Raimundinha olhou-os com os olhos compridos. Só saíra de Umburana uma vez, quando foi para se batizar no comércio. E Doroteu nem isso. Saíam agora tangidos pela seca. Mais que pela seca: pela miséria.

Das Vige, com o filho escanchado nas cadeiras, deu uma olhada nos fundos da casa. Lá estava vazio, embaixo dos galhos secos do pé de baraúna, o girau grande dos tempos de fartura, onde ficava o pote de coalhada, onde secava ao vento a matalotagem. Das Vige entrou e passou a tranca da porta. Olhou sem deter z vista, no quadro de Nossa Senhora com Deus Menino nos braços. Doroteu remexia-se nos seus quadris sumidos. Nem pediu a Nossa Senhora que tomasse conta do que ficava. E saíram. Manezim meteu a mão pelo buraco da parede e passou a taramela da porta da frente. Saíram de vista baixa. Não tiveram nem coragem de olhar para os lados. Das Vige à frente, Manezim por último. Era um triste cortejo. De pouca gente, mas que ia arrastando consigo a terra, os bichos, a aguada, os sonhos, as esperanças. Todos com os pés pesados. Parecia que o chão tinha imã, tentando retê-los.

Na dobra do cercado, Manezim, os alforjes pesados nos ombros, o saco na mão, olhou pela última veaz para trás. Lá ia ficando a casa, a malhada, o curral, o chiqueiro, o caminho para a cacimba. Arrancou um graveto de ‘canela-de-veio’ na cerca em ruína e saiu com ele entre os dedos. Era uma lembrança do que ficou. Ao passar no lajedo grande, lá estava o caldeirão com o fundo de terras rachado em todos os sentidos. Até a pedra parecia rachada também. Um mau cheiro doido de carniça. O nariz apontou-a.
-É o Bolinha, pai...

Raimundinha abriu no choro. Quis correr para junto, para os restos do cachorro que fora o seu companheiro de brinquedo. O pai deteve-a. Viera morrer de fome distante de casa. A pele já andava cheia de ferida. Talvez os urubus começassem a devorá-lo ainda com vida.

Manezim reuniu alguns gravetos e cobriu-o. Fez fogo depois. Do fósforo que vinha poupando gastou um pau na cremação do amigo. Raimundinha chorou ainda mais quando viu as labaredas escondendo e estalando no corpo de Bolinha. O fogo comeu até o fedor.
-Vambora, Raimundinha...

Das Vige, parada lá adiante, sacudia a cabeça em mais um soluço. Manezim mastigou o graveto de ‘canela-de-veio’ que ainda carregava. Mastigou com força. Mastigou com raiva. Mastigava a sua dor. Uma dor maluca de retirante”.


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