Mais que político,
escritor
Pedro
J. Bondaczuk
O décimo nono contista
(por ordem de publicação) presente na antologia de contos “Histórias da Bahia”
(Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963) – que tomei como referência para esta série
de estudos sobre 23 dos principais ficcionistas baianos – é Ruy Santos. Ele
militou por tanto tempo na política, inclusive em âmbito nacional, que poucas
pessoas se lembram hoje em dia, passados vinte e oito anos da sua morte
(ocorrida em 25 de maio de 1985), que ele também foi escritor. Mas foi. E dos
melhores que a Bahia já produziu para a Literatura brasileira. E olhem que esse
Estado tem tradição de qualidade, sobretudo na ficção (como demonstrei, de
sobejo, nesta série de estudos)!!!
Ruy Santos, que nasceu
na cidade de Casa Nova, em pleno sertão baiano, em 15 de fevereiro de 1902, não
foi apenas atuante político e nem só escritor. Foi médico, jornalista
(editor-chefe dos jornais “Estado da Bahia” e “Diário de Notícias”), além de
professor, tanto de Medicina, quanto da Escola Normal e da Faculdade de
Filosofia do seu Estado. Pouca gente, porém, se lembra dessa sua destacada
atuação na vida pública. Restou, para a posteridade, apenas, um monte de
referências sobre sua carreira política. Uma pena!
Mas, pudera! Ruy Santos
foi, por exemplo, prefeito da cidadezinha de Itapira de Itacaré (atual
Ubaitaba), que ajudou a emancipar, quando clinicava naquela localidade do
sertão baiano. Foi, por vinte anos (alternados), deputado federal, tanto no Rio
de Janeiro, quanto em Brasília. Seus mandatos foram, respectivamente, de 1946 a
1959 e de 1963 a 1970. Na sequência, no ano seguinte, em 1971, elegeu-se
senador pela Bahia, função que exerceu até 1978, sem completar o mandato de
oito anos. Por que? Porque se indispôs com o “cacique político” do seu Estado,
o governador Antonio Carlos Magalhães, e renunciou ao um ano que faltava para
completar o período legislativo normal de um senador (recorde-se que o País
estava, então, no auge da ditadura militar).
Para mim, porém,
nenhuma dessas funções que exerceu é tão relevante, como sua condição de escritor.
E que escritor! Ruy Santos foi o mais legítimo representante da ficção
regional, no seu caso, da área do Rio São Francisco. Publicou obras de ficção
realistas, verossímeis, humanas e, por isso, monumentais. Cito como exemplos o
romance “Água barrenta” (1954, José Olympio Editora) e “Teixeira Moleque”
(1961, pela mesma editora). Mas há tantos e tantos outros livros de altíssima
qualidade literária seus, incluindo novelas e contos. Grande memorialista, Ruy
Santos publicou cinco livros de memórias. Mas, não deixou de registrar suas
opiniões e observações políticas, publicando pelo menos quatro volumes sobre o
tema. Fez, também, incursão pelo teatro, e publicou o enredo de uma peça de
grande aceitação e sucesso.
Mas foi na ficção
regional que, no meu entender, brilhou com mais intensidade. Quando tinha, por
exemplo, apenas quarenta dias de vida, seus pais foram forçados a deixar,
correndo, a casa em que moravam, invadida pelas águas do Rio São Francisco, que
a levaram de roldão, em uma de suas tantas e freqüentes cheias. Isso calou
fundo em seu subconsciente. Embora bebê na ocasião, essa dramática inundação,
literalmente, inundou sua vida. Ele mesmo confessou isso, em entrevista, ao
afirmar: “Não sairia ele (o Rio São Francisco) da minha cabeça e do meu
coração”. Atesta-o a excelência do romance “Água barrenta”. Já em “Teixeira
Moleque”, teve a oportunidade de relatar, ficcionalmente, a dura experiência de
um médico no sertão baiano, carente de todo e qualquer recurso, tendo que fazer
das tripas coração para salvar vidas, aquelas em que isso era possível.
O conto com que
participou de “Histórias da Bahia”, intitulado “Manezim da Umburana”, traz à
baila outro drama bastante comum do sertão nordestino: a seca. Na época em que
foi selecionado para integrar a antologia, era deputado federal e já atuando em
Brasília. Não há referência de onde essa história foi extraída. Todavia, é de
arrepiar, pelo realismo e pelo poder descritivo, nu e cru, tão competente, que
quem a lê, visualiza, de imediato, com a maior facilidade, cenário e
personagens do enredo que, neste caso, trata da dura sina de uma família de
retirantes. Reproduzo, para seu conhecimento, paciente leitor, o trecho final
desse agudo drama de Manezim, Das Vige e filhos, que chega a causar mal estar,
de tão realista e cru que é. Confira:
“(...)
Levantaram-se. Nem se benzeram. Esqueciam-se de Deus. Deus também parecia ter
se esquecido deles. Nenhum canto de galo, longe que fosse. Nem trinado de
passarinho, nem resfolegar de cavalo no pasto, nem chacoalhar de cascavel. De
vivos apenas eles. E que vida”
Num
saco remendado já estavam arrumados os brugunços da viagem; no alforje uns
restos de coisas que comer, um caneco, a cafeteira de flandre. Manezim calculou
no bornal o que sobrava de água. E a viagem naquele sol danado tinha que fazer
sede nos filhos. Acordou os meninos. Comeram uns tacos de carne com farinha.
Das Vige deu o peito vazio a Doroteu.
Enquanto
a mulher iludia o estômago do filho com o peito murcho, Manezim botou para
dentro de casa o eu tinha de guardar. Sua sela de vaqueiro. Uma cangalha já sem
enchimento. Um pote velho. Umas peias endurecidas pelo desuso. Pedaços de
correia de arriar bezerro. Cambão careta.
O
alpendre ficou limpo. Desceu então ao riacho a ver se o olho d’água aflorava.
Correu os olhos por tudo. Galhos secos de umbuzeiro e umburana apontavam para o
céu já meio claro. O chão tinha ainda um resto da quentura do sol de véspera.
Voltou para casa.
-Vamo,
das Vige... Enquanto o sol não sai... Daqui pra arcançá a casa do véio Libório
ele já ta arto...
A
mulher jogou ainda no saco as redes e as cobertas mijadas dos filhos.
Vestiu-lhes as camisetas duras de sujo.
-Pudemo
ir...
Raimundinha
olhou-os com os olhos compridos. Só saíra de Umburana uma vez, quando foi para
se batizar no comércio. E Doroteu nem isso. Saíam agora tangidos pela seca.
Mais que pela seca: pela miséria.
Das
Vige, com o filho escanchado nas cadeiras, deu uma olhada nos fundos da casa.
Lá estava vazio, embaixo dos galhos secos do pé de baraúna, o girau grande dos
tempos de fartura, onde ficava o pote de coalhada, onde secava ao vento a
matalotagem. Das Vige entrou e passou a tranca da porta. Olhou sem deter z
vista, no quadro de Nossa Senhora com Deus Menino nos braços. Doroteu
remexia-se nos seus quadris sumidos. Nem pediu a Nossa Senhora que tomasse
conta do que ficava. E saíram. Manezim meteu a mão pelo buraco da parede e
passou a taramela da porta da frente. Saíram de vista baixa. Não tiveram nem
coragem de olhar para os lados. Das Vige à frente, Manezim por último. Era um
triste cortejo. De pouca gente, mas que ia arrastando consigo a terra, os
bichos, a aguada, os sonhos, as esperanças. Todos com os pés pesados. Parecia
que o chão tinha imã, tentando retê-los.
Na
dobra do cercado, Manezim, os alforjes pesados nos ombros, o saco na mão, olhou
pela última veaz para trás. Lá ia ficando a casa, a malhada, o curral, o
chiqueiro, o caminho para a cacimba. Arrancou um graveto de ‘canela-de-veio’ na
cerca em ruína e saiu com ele entre os dedos. Era uma lembrança do que ficou.
Ao passar no lajedo grande, lá estava o caldeirão com o fundo de terras rachado
em todos os sentidos. Até a pedra parecia rachada também. Um mau cheiro doido
de carniça. O nariz apontou-a.
-É
o Bolinha, pai...
Raimundinha
abriu no choro. Quis correr para junto, para os restos do cachorro que fora o
seu companheiro de brinquedo. O pai deteve-a. Viera morrer de fome distante de
casa. A pele já andava cheia de ferida. Talvez os urubus começassem a devorá-lo
ainda com vida.
Manezim
reuniu alguns gravetos e cobriu-o. Fez fogo depois. Do fósforo que vinha
poupando gastou um pau na cremação do amigo. Raimundinha chorou ainda mais
quando viu as labaredas escondendo e estalando no corpo de Bolinha. O fogo
comeu até o fedor.
-Vambora,
Raimundinha...
Das
Vige, parada lá adiante, sacudia a cabeça em mais um soluço. Manezim mastigou o
graveto de ‘canela-de-veio’ que ainda carregava. Mastigou com força. Mastigou
com raiva. Mastigava a sua dor. Uma dor maluca de retirante”.
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