Wednesday, March 19, 2014

Tirania sustentada na força

 

Pedro J. Bondaczuk

O mês de junho passado, na Coréia do Sul, caracterizou-se por uma avassaladora onda de protestos estudantis contra a tentativa do presidente desse país de tirar o nome do seu sucessor simplesmente do bolso do seu colete, numa “ação entre amigos”, como sempre aconteceu nos 42 anos de independência dessa República asiática.


Os atos públicos culminaram na aceitação, por parte do governo, de mudar (finalmente) as regras viciadas desse jogo político. Mas a violência deixou um mártir, o universitário Lee Hwan-Yul, de 21 anos, morto após ser atingido na cabeça por uma bomba de gás lacrimogêneo.


Agosto, por outro lado, caracterizou-se por protestos trabalhistas. Mais de três centenas de greves paralisaram, virtualmente, a economia sul-coreana e tornaram a levar inquietação à população local. Como no caso anterior, o dos estudantes, alguém levou a pior na briga. E este foi o operário Lee Suk-Kyu, de 24 anos.


Coincidentemente, além do prenome idêntico ao do universitário que morreu em junho, neste caso a causa mortis também foi igual. Ou seja, uma bomba de gás lacrimogêneo, que atingiu a cabeça do manifestante, fazendo com que ele perdesse um olho e, posteriormente, a vida.


Nos dois episódios, portanto, (e em tudo o que já aconteceu de ruim na Coréia do Sul nos últimos tempos), está a força de repressão, criada para manter a ordem, mas que tem sido o maior fator de desordem do país. E é isso o que os sul-coreanos também desejam mudar, entre outras tantas coisas. Ou seja, esta forma insensata da população ser tratada pelas autoridades, como se cidadãos adultos, cultos e produtivos, precisassem de permanente tutela, a poder de cassetetes e gás lacrimogêneo, como se fossem imbecis que apenas entendessem a linguagem da pancada.  


É inútil o primeiro-ministro Kim Chung-Yul vir a público com a mesma cantilena de todos os caudilhos deste século: a de que o Estado-policial recorre à força para evitar o perigo esquerdista (nos Estados totalitários do Leste europeu a lenga-lenga é a mesma, só que o risco apregoado é o de direita).


Deve haver alguma lei, na Coréia do Sul, contra o abuso de poder. Pois que seja usada contra os que se excedem na repressão. Embora os caudilhos jamais admitam, são os que abusam da violência, que arruína a ordem pública e finda por cavar a sepultura dos seus hediondos regimes, que fazem dessa prática covarde uma norma cotidiana.


O conceito mais elementar que existe sobre o assunto foi expressado, a caráter, com extrema inteligência, por William Shakespeare, no ato 2 da peça “Medida por Medida”, quando a personagem Isabela diz: “É ótimo ter a força de um gigante; mas é uma tirania usá-la como um gigante”.


(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 29 de agosto de 1987).

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