Saturday, March 01, 2014

Pragmatismo ou cinismo?


Pedro J. Bondaczuk


O bispo anglicano negro, Desmond Tutu, da África do Sul, em um pronunciamento feito ontem, em uma rede de TV norte-americana, expressou toda a sua decepção com o governo dos Estados Unidos, pela posição assumida pelo presidente Ronald Reagan face à política do “apartheid”. Em se tratando de um clérigo, acostumado, portanto, a lidar com pessoas de comportamento altamente ético, não é de se estranhar que tenha se decepcionado com a forma com que os políticos se conduzem.

Para estes, o pragmatismo econômico sobrepuja qualquer postura moral. Ou seja, dos órgãos do corpo humano, o que sequer faz parte dele (mas quase já se incorporou ao organismo, tal é a sua vinculação com o homem), “o bolso”, é tocado muito mais sensivelmente do que o cérebro, por exemplo. E isso é muito fácil de se demonstrar.

O bispo Tutu, que pela sua coragem e determinação na luta pelo sagrado direito de igualdade entre seres semelhantes, sem barreiras de cor, religião ou sexo, recebeu o Prêmio Nobel da Paz no ano passado, fez uma indagação que deve ter incomodado a muito telespectador norte-americano que assistiu sua entrevista.

Perguntou: “Como é possível se impor, com tamanha facilidade, sanções econômicas à Nicarágua, ou à Polônia, e nada fazer em relação à minoria branca da África do Sul?”. O que é obscuro para o sacerdote, é muito fácil para qualquer um de nós entender.

Acontece que, no plano comercial, os nicaragüenses nada significam para os Estados Unidos. O que têm eles a oferecer à superpotência ocidental, que ela não possa obter, até com vantagens, em outras fontes? Café? O Brasil tem fartura desse produto! Açúcar? A mesma coisa! Os Estados Unidos podem adquirir, até ganhando um pouquinho no preço, aqui, em nosso país e no ágil mercado europeu. Bananas? A Costa Rica tem essa fruta com fartura!

Mas, em relação à África do Sul, a coisa muda de figura. Os laboriosos “affrikaners” (e ninguém pode negar a capacidade de trabalho dessa gente), construíram, em seu país, uma sociedade quase auto-suficiente. Ele é, por exemplo, o maior exportador do mundo de ouro e de pedras preciosas. Apenas esses dois minerais, pela altíssima cotação que têm, dada a sua escassez, já seriam suficientes para dotar os sul-africanos de uma economia sólida, capaz de comprar o que quer que precisem ou desejem. Até mesmo consciências...

Centenas de empresas norte-americanas e européias têm, na África do Sul, prósperas filiais. Isto é, exploram, da mesma forma que o fazem os “affrikaners” brancos, a farta e baratíssima mão-de-obra negra. Com isso, seus lucros chegam, proporcionalmente, a ser bem mais altos do que nas respectivas matrizes.

Boicotar esse país, portanto, equivaleria a desempregar milhares de pessoas nos Estados Unidos, na Alemanha Ocidental e na Grã-Bretanha, por exemplo. Ou, para usar uma comparação figurada, seria como fazer um assado da galinha que põe ovos de ouro.

E é nesta hora que o órgão mais sensível do homem contemporâneo, o “bolso”, fala mais alto. Os escrúpulos são deixados de lado, as autoridades resmungam alguns clichês surrados, sem qualquer conteúdo mais substancial, e se sentem com as consciências apaziguadas. Se é que estes seres robotizados, da era pré-apocalíptica, apelidados de “humanos”, possuem, ainda, qualquer coisa que ao menos lembre isso. Esta é a realidade dos tempos atuais, desta triste e deprimente era do “salve-se quem puder”. O resto...Bem, não passa de mera poesia...

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 26 de julho de 1985).


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