Obsessão pelo tempo
Pedro
J. Bondaczuk
O poeta, geralmente, é
estereotipado pelos que não têm essa aptidão estética. Há quem confunda arte e
vida e entenda que o artista deva refletir, obrigatoriamente, em sua obra, a
maneira que vive. Às vezes, acontece. Mas não é regra. Boa parte das pessoas relaciona
excentricidade com talento poético. Ou seja, entende que o poeta,
“necessariamente”, tem que ser, ou é, um excêntrico por excelência. E que, se
não for... está em gênero errado. A coisa, porém, não é bem assim. Está claro
que isso não passa de estereótipo que, de tanto ser adotado, vai se
consolidando e se transformando quase em norma.
Conheço, e não somente
isso, convivo com inúmeros poetas absolutamente normais por qualquer padrão de
normalidade que se adote. Deles apenas se sabe da vocação que têm lendo seus
poemas. Trajam-se como qualquer sujeito comum, cuidam da aparência como a
maioria de nós, comportam-se sem manifestar a mínima excentricidade
etc.etc.etc. Em suma, são “gente como a gente”.Nem por isso, seus poemas são
convencionais. Não necessariamente. A maioria esbanja criatividade e,
sobretudo, originalidade. Uma coisa não está, pois, necessariamente, ligada à
outra. Pode até estar, mas casualmente. Não se trata de norma.
Há poetas, porém, que
justificam o estereótipo de excêntricos. É o caso, por exemplo, do espanhol
Gabriel Ferrater e Soler. Sua excentricidade, explico, não estava na maneira de
se trajar, de falar ou de se comportar. Nesse aspecto, era normalíssimo. Estava
na obsessão pelo tempo. Não, como no meu caso, o elegendo como tema
preferencial dos seus textos. Nada disso. Mas na forma de encará-lo. Isso, para
mim, ficou claro somente após sua morte. Ferrater declarou, certa feita, ao um
grupo de amigos, que não viveria mais do que meio século. Não foi levado a
sério, claro. Afinal, estava saudável, vinha fazendo sucesso com seus livros e
tinha uma vida intelectual intensa e bem sucedida. Tudo bem que a vida conjugal
não andava de vento em popa, mas parecia não se importar com isso.
Como tantos personagens
do mundo das letras de que já tratei, era um sujeito de múltiplos talentos.
Era, pois, dos tantos que classificamos figurativamente de intelectuais dos
“sete instrumentos”. Além de poeta, era professor, filósofo, diretor editorial
e tradutor, entre outras tantas aptidões. Nasceu em 20 de maio de 1922, em
Reus, na região espanhola de Tarragona. Uma das melhores avaliações que li a
seu respeito (infelizmente, não anotei a fonte, mas faço questão de
reproduzi-la entre aspas, para deixar claro que não é minha) é a seguinte: “Gabriel Ferrater representa um modelo de
intelectual e de poeta heterodoxo e atípico. Foi, basicamente, um homem de
letras liberal e independente, cético, anti-provinciano, despojado de
ideologias e dogmatismos (políticos ou estéticos) e, acima de tudo, lúcido, iconoclasta
e provocador. Foi um personagem pouco convencional, autodidata, rigoroso,
amado, didático e sempre apaixonado”.
Em termos literários,
seu estilo não comporta classificações. Foi uma espécie de síntese entre a
tradição poética (jamais abriu mão, por exemplo, da utilização de métrica) com
a modernidade. Os críticos identificam, em seus poemas, um pouco de François
Villon, de Charles Baudelaire, de Arthur Rimbaud, de Robert Frost, de Cesare
Pavese, de T. S. Eliot e de Bertholt Brecht, entre tantos poetas, sem que se
pareçam, de fato, com os compostos por nenhum deles. Reitero, sua poética
destaca-se por ser rigorosamente original, originalíssima, à prova de
classificações.
E onde entra sua
“obsessão pelo tempo”, que eu disse ter
identificado? Bem, ela não é ostensiva. É sumamente sutil. Todavia, é
comprovável. Cito duas provas, que
considero as mais importantes e incontestáveis. A primeira foi o fato dele ter
composto a totalidade da sua obra poética em apenas uma década, entre 1958 e
1968. Aliás, teve mais livros publicados postumamente (seis) do que em vida
(quatro). O leitor atento pode concluir que se tratou de coincidência. Pode
ser? Pode! Mas será que foi? A segunda pista, todavia, creio ser contundente e
definitiva.
Eu informei que Gabriel
Ferrater disse, em certa ocasião, a um grupo de amigos que não viveria além de
meio século. Deu a entender que sequer chegaria a tanto. Ao que se sabe,
ninguém o levou a sério. E nem poderia! Todos dizemos, e o tempo todo, um monte
de bobagens, principalmente quando tentamos adivinhar o futuro. E elas entram
por um ouvido e saem por outro, sem gerar consequências. Ocorre que Ferrater
cumpriu o que prometeu. Porquanto, os amigos se convenceram, quando tudo se
confirmou, que não se tratou, propriamente de “previsão” feita por ele, mas de
“promessa”. Como? Simples!
Gabriel Ferrater
cometeu suicídio, no quarto de sua casa, em Barcelona, ingerindo grande
quantidade de uma mistura de barbitúricos. Não estava doente, não estava
triste, não estava deprimido e nem tivera nenhum insucesso financeiro ou
desilusão amorosa. Não tinha o mínimo motivo para se matar. O suicídio ocorreu
em 27 de abril de 1972. Faltavam só 23 dias para Ferrater completar cinquenta
anos de idade, ou seja, meio século, o tempo que ele prometera a amigos que não
atingiria. E, como se vê, não atingiu. Reitero, não se tratou de nenhuma
“previsão” Foi, isso sim, “promessa”,
que findou por cumprir. Querem obsessão pelo tempo maior do que esta?
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