Vida que ofusca a arte
Pedro
J. Bondaczuk
A vida de Benvenuto
Cellini é caracterizada por aventuras, por sucessivas fugas (inclusive de
prisões), por viagens e mais viagens, tudo em decorrência de vários delitos que
cometeu. Chegou, até, a ser condenado à morte, sentença essa revogada por
intercessão do papa Clemente VII, seu fanático admirador. É difícil, inclusive,
de contabilizar os homicídios que praticou, pois foram inúmeros, sob os mais
variados pretextos: ora em legítima defesa, ora por inveja de outros artistas
que ameaçavam lhe usurpar a clientela, ora por disputa de mulheres, ora por
vingança, ora por razões mais fúteis e absurdas, não importa. Porquanto, era
tanto hábil no manejo de armas – quer as brancas, como espadas, estiletes e
punhais, quer as de fogo, inclusive canhões – quanto nos instrumentos da sua
arte de ourivesaria e de escultura. E da flauta também, pois consta que era
excelente flautista.
Muitos leitores
contestam-me e reclamam que estou dando imensa importância aos erros (na verdade,
crimes) cometidos por Cellini, em detrimento de sua arte. Bem, explico que, em
primeiro lugar, minha intenção (e minha capacidade) não é a de escrever a
biografia desse personagem. Nem desse e nem de nenhum outro. Não sou, nunca fui
e provavelmente jamais serei biógrafo de quem quer que seja. Não tenho essa
veleidade. Estas reflexões, reitero pela enésima vez, são meros comentários à
margem de alguns aspectos que mais me chamam a atenção na vida daqueles que
enfoco. E na de Cellini, esse é o ângulo mais relevante e óbvio que constato,
até pela reiteração.
Em segundo lugar,
quanto à arte de Cellini, há consenso, tanto no seu tempo, quanto nos dias
atuais, a propósito de sua genialidade. Não conheço um só especialista que a
tenha posto em dúvida. Ademais, vocês acham que pessoas poderosas, como papas,
príncipes, cardeais e magistrados, que compunham sua seleta clientela, com
refinadíssimo gosto artístico e com recursos para adquirir as mais preciosas e
requintadas obras e financiar os mais peritos artistas, iriam valorizar quem
não tivesse valor? Claro que não!!! E ainda mais, valorizar a tal ponto, de
fazer vistas grossas a seus crimes e vícios, em troca de peças que
considerassem magníficas? Esse aspecto, o do talento e genialidade, é, pois,
mais do que valorizado por peritos em arte. Há consenso em torno dele. Não é
novidade para ninguém.
O que mais atrai, nas
biografias de Cellini (e li várias, de diversos autores), e que inspira,
inclusive, artistas das mais diversas artes, são, exatamente, suas ações, que
fogem do convencional e de quaisquer padrões mínimos de normalidade. Ele
próprio, em sua autobiografia, dá muito mais ênfase a esse aspecto do que aos
êxitos (que não eram poucos) que obtinha com seu reconhecido talento artístico.
A primeira confusão
documentada em que Cellini se meteu ocorreu em 1516, quando tinha, apenas, 16
anos de idade. Envolveu-se em uma briga para defender um irmão mais novo.
Ocorre que os desafetos eram filhos de famílias poderosas de Florença. E como a
corda sempre rebenta do lado mais fraco.... foi julgado culpado de começar o
conflito (mesmo sem ser o responsável) e exilado para a cidade de Siena. Pôde
regressar ao lar somente seis meses depois.
Outra confusão em que
se envolveu, esta muito mais grave, ocorreu, também, por causa de um irmão,
agora do mais velho. E resultou em homicídio, um dos tantos que cometeu ao
longo da vida. O ensaísta francês, Paul de Saint-Victor, narra da seguinte
forma esse gravíssimo incidente: “Seu irmão foi morto num conflito de corpos da
guarda; ele olha de soslaio ‘igual a uma concubina’ o arcabuzeiro que deu o
tiro, até que, encontrando-o à porta de uma taberna, o degola, pelas costas,
com um golpe de estilete, entre o pescoço e a nuca”.
Esse homicídio,
motivado por vingança, ocorreu em Roma, quando o artista estava a serviço do
Vaticano. Claro que foi preso. Afinal, cometera um assassinato, mesmo que se
tratasse de “lavagem da honra da família com sangue”, como era comum, na
verdade obrigação, na época. Sabem, porém, o que lhe aconteceu? Nada!!!
Absolutamente nada!!! Saint-Victor narra porque ele escapou impune desse crime:
“... De início, (o
papa) Clemente VII se aborrece, manda-o ao Quirinal e observa-o com olhos
ameaçadores. Cellini tira de sua escarcela um botão de capa-manga, no meio do
qual gravou, em meio relevo, um maravilhoso Deus Padre, sentado sobre um grande
diamante, sustentado por anjinhos. Imediatamente a cólera do papa se dissipa, o
rosto brilha, como iluminado pelo reflexo da divina jóia. Não é mais um juiz
irritado, um soberano prestes a punir, é um amador idólatra, volvendo e
revolvendo uma jóia excepcional entre as mãos trêmulas de entusiasmo.
‘Benvenuto mio, julgo que te encontraste em tal situação que não poderias
proceder de outro modo’”. Foi o que o poderoso papa, que fazia tremer reis e
impérios, disse ao astuto artista, E Cellini saiu da audiência absolutamente
livre, como se não tivesse cometido crime algum, muito menos de sangue. E,
pior, com a agravante de haver matado a vítima pelas costas, sem lhe dar a
menor chance de defesa.
Saint-Victor resume da
seguinte forma o caráter colérico e implacável desse assustador personagem:
“Não tem um instante de repouso, nem uma trégua, nesta existência agressiva.
Desembainhar, tirar o punhal, era o mais espontâneo e o mais freqüente de seus
gestos. Todas as afrontas são iguais ante seu rancor. Culpava de morte a
irreverência e o ultraje, a ofensa fútil tanto quanto a afronta sangrenta. Como
tinha coroado e consagrado a si mesmo monarca absoluto de sua arte, cada delito
à sua pessoa julgava crime de lesa-majestade”.
Como o leitor pode
perceber, não invento nada a propósito do temperamento agressivo de Cellini.
Suas ações estão todas documentadas, para quem quiser conferir. Ele próprio as
menciona (e tenta, claro, justificar o injustificável) em sua autobiografia. É
certo que chegou a pôr sua habilidade no manejo de armas e seu instinto para a
violência a serviço do papado, o que lhe granjeou ainda mais prestígio junto
aos papas do que o obtido com sua arte. Foi durante o ataque a Roma, perpetrado
sob o comando de Constable de Bourbon. Cellini afirma, em sua autobiografia,
que o tiro que matou o comandante da invasão foi disparado por ele. Se foi ou
não, ninguém sabe o certo. Mas cá para nós: “como esse sujeito adorava uma
encrenca!”.
O curioso é que Cellini
foi contratado pelo Vaticano não como ourives e nem como o escultor que era,
mas como flautista, embora os serviços que prestou fossem todos de ourivesaria
e de escultura. Consta que tocava muito bem. Se a sua participação na defesa de
Roma valeu-lhe prestígio, pela coragem no campo de batalha, por pouco ela lhe
custou a liberdade e a vida. E não por causa de algum eventual invasor, nada
disso.
Ocorre que o sucessor
de Clemente VII, Paulo III, ordenou a prisão de Cellini pela acusação dele
haver furtado – durante o saque feito pelas tropas invasoras à cidade –
aproveitando-se da confusão reinante, jóias do Vaticano no valor de 80 mil
ducados. Seu roubo nunca ficou provado (e muito menos sua inocência). Presumo,
porém, dado seu retrospecto, que ele o tenha praticado mesmo. Mais uma vez,
todavia, o tinhoso aventureiro conseguiu convencer (ou ludibriar? ou subornar?)
um pontífice e ver-se livre de castigo. Não conheço nenhum outro artista, de
tempo algum, por mais turbulento e feroz que tenha sido, que cometesse tantos e
tão constantes delitos como Cellini. Você, porventura, conhece, meu crítico e
cético leitor?
No comments:
Post a Comment