Entrando na História
pela porta da frente
Pedro
J. Bondaczuk
Uma das tarefas que
sempre julguei (e ainda julgo mais do que nunca) complicadíssima é a de
escrever sobre a morte de alguma pessoa com a qual eu tenha alguma espécie de
vínculo emocional, mesmo que remoto. Nessas circunstâncias, a objetividade vai
para o espaço. Pudera! Como manter, afinal, o equilíbrio quando a emoção aflora
à pele, extravasa por todos os poros,
toma conta do cérebro e ofusca a razão? É difícil, muito difícil. Para
mim, que sou sumamente emotivo, é mais do que isso: é impossível. É o caso
específico, por exemplo, da morte, ocorrida neste dia 5 de dezembro de 2013, da
figura internacional que alcei à categoria de ídolo, de modelo, de referencial
de conduta e por razões que dispensam explicações, de tão óbvias que são.
Refiro-me a Nelson Rolihlahla Mandela, o “Madiba”.
O que eu poderia
escrever a seu respeito que milhões de jornalistas, escritores e líderes
mundiais já não tenham escrito, manchetado, comentado ou simplesmente dito? Em
termos objetivos, nada! Absolutamente nada! Só de biografias de Mandela, numa
rápida pesquisa de no máximo dois minutos, encontrei três dezenas! Jornais,
revistas e sites da internet, do mundo todo, trazem-no, hoje, em suas capas.
Muitos dedicam-lhe páginas e mais páginas internas de textos e fotografias,
resumindo sua exemplar vida, de 95 anos, 27 dos quais passados em cativeiro, ao
qual foi condenado injustamente, apenas por pregar o que deveria ser óbvio para
todos os povos, para todos os homens: a convivência harmoniosa e pacífica entre
os seres humanos, sem diferenciação da cor da pele, gênero, religião e tantos
outros fatores utilizados para diferenciar pessoas. Artigos os mais diversos
enfatizam sua característica mais marcante e rara no Planeta: sua inesgotável
capacidade de perdoar e de não nutrir um pingo que fosse de revanchismo, de
espírito de vingança e, sobretudo, de ódio.
Valorizo sobremaneira
essa virtude por ser incapaz de exercitá-la. Eu, no seu lugar, mesmo achando,
racionalmente, que a atitude que adotou é a correta, jamais conseguiria agir da
forma como agiu caso passasse por idêntica agressão a que ele passou – e não
somente por um dia, um mês, um ano ou mesmo dez, mas em quase 28 de humilhações
e sofrimentos. Certamente sairia da prisão, caso saísse, exalando ódio total, à
espera da menor oportunidade, da mais remota que fosse, para uma terrível
vingança contra meus opressores. Conciliação naquelas circunstâncias? Nunca!!!
Nem pensar!
Mas..não foi assim que
Mandela agiu. Não perseguiu e sequer exigiu a mínima reparação dos que o
humilharam e suprimiram os que poderiam ter sido os melhores anos de sua vida.
Pelo contrário, convocou-os a uma tarefa que parecia impossível de ter sucesso:
a de atuarem juntos na construção de uma sociedade multirracial, sem ódios,
rancores, revanchismo e nem mais discórdias. E obteve êxito. Mas, tudo isso,
milhões de pessoas, melhores do que eu, ao redor do mundo, já disseram e
escreveram.
Só me resta, portanto,
como fiz em relação ao passamento de algumas outras personalidades que admirei,
tentar exprimir o inexprimível. Ou seja, relatar, de forma coerente (mas
como?!!!) o que estou sentindo neste momento com sua perda. Embora, óbvio, não
tivesse o privilégio de conhecer pessoalmente essa figura maiúscula, Mandela
foi a personalidade com a qual mais me envolvi emocionalmente, como
profissional de imprensa, ao longo da minha extensa carreira jornalística. Como
se vê, deixei de cumprir uma das regras, a principal delas, a “pétrea” da minha
profissão: a isenção. Ou seja, o não envolvimento com os personagens das minhas
matérias.
Em meados dos anos 60,
quando pouca gente falava do absurdo encarceramento desse idealista e muitos
colegas de imprensa até insinuavam que a prisão era de certa forma “justa”,
dando a entender que se tratava de um “terrorista”, a organização defensora dos
direitos humanos, Anistia Internacional, iniciou um movimento, a princípio com
pouca ou nenhuma repercussão, pela liberdade do líder negro. E numa época em
que os meios de comunicação brasileiros praticamente ignoravam o martírio de
Mandela, tive o orgulho e a honra de assinar uma petição internacional para que
ele, se não fosse libertado, pelo menos
tivesse seu processo revisado e contasse com novo julgamento, desta vez real, e
não a farsa daquele que o condenou.
Meus leitores do
Correio Popular de Campinas são testemunhas que esse homem excepcional foi o
personagem sobre o qual mais escrevi, nos quase catorze anos em que
mantive coluna de comentários
rigorosamente diária nesse jornal sobre os principais fatos e líderes mundiais.
Em sucessivos artigos, todos enfatizando a injustiça do seu encarceramento,
pedi (na verdade exigi), o que a Anistia Internacional então exigia cada vez
mais enfaticamente e com crescente adesão: sua imediata libertação. Cheguei a
ser advertido em várias ocasiões por bater tanto nessa tecla. Ignorei.
E foi com incontida
emoção que, em 11 de fevereiro de 1990, o que parecia impossível, aconteceu:
Mandela, finalmente, ganhou a liberdade. Começava aí a mais incrível e bela
história do século XX (e justo no seu final) e, possivelmente, de todos os
tempos: o do nascimento de uma nação livre, democrática, multirracial que, a
despeito dos seus inúmeros problemas econômicos e sociais, estava absolutamente
reconciliada, com brancos e negros deixando de ser antagonistas para viverem
como irmãos.
Perdoem a incoerência
deste texto. Quando a “poeira assentar” provavelmente conseguirei ser mais
objetivo ao tratar dessa figura tão carismática. Neste momento, porém, o que prevalece
é a emoção. É a dor da perda, como se fosse a de um parente ou de um amigo
muito querido. É verdade que sua morte era previsível, dada sua avançada idade,
e as várias internações em hospital, principalmente nos últimos três anos,
decorrentes de seus problemas cardio-pulmonares. Morre o homem, mas fica o
máximo que pode ficar de algum ser humano (de pouquíssimos, por sinal): a
memória. As suas obras. O seu incomparável exemplo. A sua integridade pessoal.
Mandela sai da vida e entra,
definitivamente, na história da humanidade, pela porta da frente!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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