Exacerbada paixão
Pedro
J. Bondaczuk
A paixão é uma das
características – se não for a principal, é, pelo menos, uma delas – dos
artistas consagrados. de todas as artes. Refiro-me, especificamente, aos que
produziram e produzem obras notáveis e originais, que embevecem e encantam
gerações e que perpetuam seus nomes no firmamento artístico, não raro séculos
(e às vezes milênios) após sua morte. Sem ela, sem a capacidade ímpar de
“expelir chispas” pelos olhos – tamanha a convicção que têm no seu talento e na
sua capacidade de expressão – nada fariam de duradouro e de excepcionalmente
belo, por maiores que fossem (ou sejam) sua competência e seu domínio técnico.
Porquanto, apenas talento não basta para a produção de obras-primas, das tidas
e havidas como geniais (por de fato serem), à prova, pois, de reparos e de
críticas.
Poucos, pouquíssimos
artistas conseguem produzir uma tela perfeita, uma sinfonia deslumbrante, uma
escultura que pareça viva de tão autêntica e excepcional, um poema inigualável
e sublime e vai por aí afora, mesmo que persistam sem cessar, em sucessivas
tentativas, sem desânimo e nem desistência, vida afora. E se não aliarem à
sensibilidade, avassaladora paixão pelo que fazem, a tarefa se torna
virtualmente impossível. Os grandes escritores, pintores, compositores,
músicos, escultores, em suma, os realizadores consagrados, foram, todos,
apaixonados por suas respectivas artes. Basta ler atentamente suas biografias.
Alguns, no entanto (na
verdade, a maioria) não souberam dosar a paixão e muito menos direcioná-la
exclusivamente para suas respectivas artes, deixando que ela “contaminasse”
suas vidas. Muitos acabaram loucos, confinados em hospícios, como foi o caso de
Vincent van Gogh. Outros tantos recorreram ao álcool e às drogas na vã
tentativa de fugir, ou de exorcizar seus demônios interiores. Vários,
descambaram para a marginalidade (como o caso do “poeta bandido”, François
Villon). Em suma, nenhum mecanismo de fuga funcionou com nenhum deles. Esses
artistas pagaram preços altos demais, proibitivos até, pelas paixões
exacerbadas que nutriram e que não souberam controlar e muito menos direcionar.
Este foi o caso do
personagem cuja vida e obra proponho-me a comentar com vocês, neste espaço, em
algumas (nem sei quantas) reflexões pontuais que farei a propósito, das tantas
que ele suscita. Refiro-me ao escultor, ourives e escritor florentino Benvenuto
Cellini. Trata-se de um dos maiores expoentes da Renascença, cujo talento foi
tão grande, que o fez ser protegido por reis e por papas, que fizeram vistas
grossas, ignoraram suas atitudes, digamos, “anormais”, quando não criminosas,
enquanto cidadão e homem, para exaltarem e reverenciarem, apenas, o artista
(sem dúvida, magnífico). Para essa empreitada, recorro, de novo, ao meu já
famoso “bloco de anotações”. Trata-se daquele que já citei dezenas de vezes, em
que registro aspectos pitorescos e inusitados das diversas biografias que leio.
Com isso, atendo, inclusive, e com prazer. pedido feito por vários leitores,
através de e-mails.
A melhor caracterização
de Cellini, das tantas que li (inclusive na autobiografia que ele nos legou),
foi a do ensaísta francês, Paul de Saint-Víctor, que assim se referiu ao
artista florentino, em um de seus tantos ensaios: “Foi um animal vivo na chama,
um homem de fogo, de fel e de bílis, que se moveu, durante sessenta anos, em
meio de paixões cujo primeiro impulso teria devorado uma organização menos
robusta”. Exagero? Creio que não. É, pelo menos, o que pretendo demonstrar na
sequência das reflexões e comentários suscitados por este homem violento,
sanguinário e mau, mas que tinha mãos mágicas, quando se tratava de produzir
arte.
Saint-Victor narra um
episódio da vida deste incomum personagem que ilustra como se formou sua
peculiar personalidade. Escreve: “Benvenuto Cellini tinha cinco anos, quando,
numa tarde de inverno, seu pai, que tocava viola, ao canto do fogão, acreditou
ver um animal semelhante a um lagarto que dançava vivo na chama. Ordenou à
criança que se aproximasse e deu-lhe uma bofetada que fez brotar lágrimas dos
olhos. Mas o pai enxugou-lhe com carícias. ‘Meu querido’, disse-lhe, ‘não bato
para punir-te, mas somente para que te recordes que este lagarto que percebes
no fogo, é uma salamandra, animal que ainda não foi visto por nenhum homem vivo
sobre a terra’”.
E Cellini aprendeu a
lição, mas através da dor, e jamais a esqueceu. Conheceu a violência desde cedo
e se convenceu que ela era atitude “normal”. Tornou-se, por conseguinte, homem
violento, voluntarioso e cruel, que
colecionou tantos (ou mais) inimigos e desafetos quantos foram os admiradores
do seu magnífico (diria, “mágico”) talento. Cito, porém, o episódio apenas como
uma espécie de “aperitivo” para o que pretendo tratar na sequência, nos
próximos dias.
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