Sunday, December 01, 2013

No que consiste o Boi bumbá

Pedro J. Bondaczuk

O enredo do “Boi bumbá” de Rondônia é, praticamente, o mesmo de outras tantas partes do País em que esse folguedo é apresentado. Há uma coisa nova aqui, outra ali, mas, basicamente, a história contada (na verdade “cantada” e coreografada) pouco difere da de outras regiões. “Onde estão, pois, as características originais que o tornam único em relação às outras vertentes?”, perguntará, com razão, o atento leitor, com base nas minhas considerações anteriores, dos textos que escrevi dias atrás.

As diferenças mais marcantes estão tanto no ritmo, quanto, e principalmente, nas letras das toadas e nas coreografias dos diversos personagens. Trata-se de  outra forma – que considero a mais pitoresca – de narrar, de maneira original, uma mesma história, que ninguém sabe (com certeza) quem é o autor (ou autores) e que enfatiza algo que para o caboclo é importantíssimo e que deveria ser, também, para todos nós: o senso de lealdade. Tentarei resumir o enredo, embora, por maior que seja meu talento narrativo (e ele nem é tão grande assim), este perca muito do seu encanto, já que a graça toda está justamente na encenação. Mas... vamos à história.

Tudo começa quando o boi surge em alguma parte do curral, ou seja, no local que serve de palco para a brincadeira. Catirina, uma das personagens centrais do folguedo, por um capricho, que não fica muito claro, pede a pai Francisco que mate o animal, que nem mesmo lhe pertence, e este atende prontamente o pedido. A notícia dessa morte logo se espalha pela vizinhança. E causa repulsa generalizada, por se tratar de um ato, sobretudo, ilegal. Ninguém pode matar uma rês que não lhe pertença. O mais revoltado de todos – por razões óbvias – é o proprietário do boi, que exige reparação. Quer porque quer a prisão do infrator e manda seus vaqueiros prendê-lo. Pai Francisco, no entanto, recusa-se a se entregar. Está disposto a resistir às últimas conseqüências.

Os vaqueiros retornam à presença do proprietário e lhe comunicam que o infrator resistiu à ordem de prisão. Contudo, o dono do animal não está disposto a deixar as coisas na base do dito pelo não dito. E volta à carga. Manda nova leva de empregados com a tarefa de prenderem pai Francisco. Porém, eles  são recebidos a tiros pelo matador do boi. E assim, a história vai se desenvolvendo, com músicas, cantos e coreografias pertinentes.

Depois de várias tentativas frustradas para prender pai Francisco, este é, finalmente, detido e levado à presença do dono do boi. Este, ainda inconformado com a perda do animal, quer não apenas a punição exemplar do matador, mas, principalmente, a ressurreição do bicho, que considerava muito valioso. Para tentar essa impossível façanha, recruta os doutores da Medicina e do Relâmpago para que realizem esse “milagre”. Claro que eles fracassam.  Mas o dono do boi não se conforma. Manda chamar o Doutor da Vida que teria o segredo da ressurreição. Este ensina a Cazumbá, uma espécie de feiticeiro, o segredo de como deveria proceder para que o animal revivesse. E o sortilégio acaba, de fato, dando certo.

O boi ressuscitou. O espanto e a alegria são gerais. Nessa parte do enredo, o proprietário entoa uma cantiga alusiva, enquanto, ao seu redor, desenvolvem-se bailados, desafios e saudações. Tudo, porém, em vão. Por que? Porque, de acordo com a tradição, o boi deveria, mesmo, morrer (nos currais das fazendas a matança acontece nos meses de julho, depois de muitas noitadas de festas). Quando vai chegando a hora do animal ser morto, este consegue fugir do seu cercado e se esconde. É procurado por todos, e por todas as partes, em vão. Disfarça-se de “Bicho Folha”, o que confunde seus perseguidores. Por mais que eles tentem, não o localizam. A busca, no entanto, prossegue, até que o boi, finalmente, é encontrado e laçado por índios e por laçadores.

O pitoresco é que os vaqueiros, que deveriam participar da captura, opõem-se a ela e lutam para impedir isso, até serem, finalmente, vencidos. Assim, o boi fujão é levado para o centro do curral, local em que deve ocorrer seu sacrifício. A Madrinha do animal cobre-o com uma toalha, enquanto seu amo canta: “Se despede (diz o nome do boi)/que tu hoje vais morrer/esse povo te olhando/mas pode te valer”  Em meio a choradeiras e lamentos do bicho, pronto para ser morto, amarrado ao mourão do curral, é finalmente sangrado. Antes, porém, que se faça a sangria, os brincalhões fazem evoluções, com a finalidade de distrair a platéia.

O objetivo dessas coreografias é o de impedir que os que assistem ao espetáculo percebam que, sob o boi, estão sendo colocadas vasilhas cheias de vinho. Tão logo o animal é morto, seu sangue (a bebida) é distribuído entre os presentes “para dar sorte”. E pai Francisco, preparando-se para retalhar a rês, canta: “Para onde vai a barrigueira?/Vai pra Nita Ferreira./Para quem mandar o filé?/Manda pra Nazaré (...)”. E assim, vai desfiando sua cantiga, rimando o nome das várias partes do boi com o de diversas pessoas, escolhidas aleatoriamente, mas que dêem rima.

Caso minha reprodução do enredo do “Boi bumbá” não tenha sido o que você esperava, caro leitor, peço-lhe mil escusas. Eu lhe avisei que meu talento narrativo não é grande coisa. Ademais, melhor do que narrar, é assistir esse folguedo que, não raro, chega a durar até oito horas, com centenas de personagens, muito ritmo, muito canto e complicadas e artísticas coreografias. Se tiver oportunidade de ver alguma apresentação, não perca. Quem sabe, um dia, esse magnífico folguedo, mesmo que de forma resumida, possa ganhar espaço na televisão, em rede nacional (embora isso seja sumamente improvável). Mas... não custa sonhar. Só assim, o Brasil inteiro conheceria o que é de fato seu (na verdade, nosso) e que corre o risco de desaparecer, por falta de interesse (na verdade, por falta de conhecimento) nosso, brasileiros.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: