No que consiste o Boi
bumbá
Pedro
J. Bondaczuk
O enredo do “Boi bumbá”
de Rondônia é, praticamente, o mesmo de outras tantas partes do País em que
esse folguedo é apresentado. Há uma coisa nova aqui, outra ali, mas,
basicamente, a história contada (na verdade “cantada” e coreografada) pouco
difere da de outras regiões. “Onde estão, pois, as características originais
que o tornam único em relação às outras vertentes?”, perguntará, com razão, o
atento leitor, com base nas minhas considerações anteriores, dos textos que
escrevi dias atrás.
As diferenças mais
marcantes estão tanto no ritmo, quanto, e principalmente, nas letras das toadas
e nas coreografias dos diversos personagens. Trata-se de outra forma – que considero a mais pitoresca
– de narrar, de maneira original, uma mesma história, que ninguém sabe (com
certeza) quem é o autor (ou autores) e que enfatiza algo que para o caboclo é
importantíssimo e que deveria ser, também, para todos nós: o senso de lealdade.
Tentarei resumir o enredo, embora, por maior que seja meu talento narrativo (e
ele nem é tão grande assim), este perca muito do seu encanto, já que a graça
toda está justamente na encenação. Mas... vamos à história.
Tudo começa quando o
boi surge em alguma parte do curral, ou seja, no local que serve de palco para
a brincadeira. Catirina, uma das personagens centrais do folguedo, por um
capricho, que não fica muito claro, pede a pai Francisco que mate o animal, que
nem mesmo lhe pertence, e este atende prontamente o pedido. A notícia dessa morte
logo se espalha pela vizinhança. E causa repulsa generalizada, por se tratar de
um ato, sobretudo, ilegal. Ninguém pode matar uma rês que não lhe pertença. O
mais revoltado de todos – por razões óbvias – é o proprietário do boi, que
exige reparação. Quer porque quer a prisão do infrator e manda seus vaqueiros
prendê-lo. Pai Francisco, no entanto, recusa-se a se entregar. Está disposto a
resistir às últimas conseqüências.
Os vaqueiros retornam à
presença do proprietário e lhe comunicam que o infrator resistiu à ordem de
prisão. Contudo, o dono do animal não está disposto a deixar as coisas na base
do dito pelo não dito. E volta à carga. Manda nova leva de empregados com a
tarefa de prenderem pai Francisco. Porém, eles
são recebidos a tiros pelo matador do boi. E assim, a história vai se
desenvolvendo, com músicas, cantos e coreografias pertinentes.
Depois de várias
tentativas frustradas para prender pai Francisco, este é, finalmente, detido e
levado à presença do dono do boi. Este, ainda inconformado com a perda do
animal, quer não apenas a punição exemplar do matador, mas, principalmente, a
ressurreição do bicho, que considerava muito valioso. Para tentar essa
impossível façanha, recruta os doutores da Medicina e do Relâmpago para que
realizem esse “milagre”. Claro que eles fracassam. Mas o dono do boi não se conforma. Manda
chamar o Doutor da Vida que teria o segredo da ressurreição. Este ensina a
Cazumbá, uma espécie de feiticeiro, o segredo de como deveria proceder para que
o animal revivesse. E o sortilégio acaba, de fato, dando certo.
O boi ressuscitou. O
espanto e a alegria são gerais. Nessa parte do enredo, o proprietário entoa uma
cantiga alusiva, enquanto, ao seu redor, desenvolvem-se bailados, desafios e
saudações. Tudo, porém, em vão. Por que? Porque, de acordo com a tradição, o
boi deveria, mesmo, morrer (nos currais das fazendas a matança acontece nos
meses de julho, depois de muitas noitadas de festas). Quando vai chegando a
hora do animal ser morto, este consegue fugir do seu cercado e se esconde. É
procurado por todos, e por todas as partes, em vão. Disfarça-se de “Bicho
Folha”, o que confunde seus perseguidores. Por mais que eles tentem, não o
localizam. A busca, no entanto, prossegue, até que o boi, finalmente, é
encontrado e laçado por índios e por laçadores.
O pitoresco é que os
vaqueiros, que deveriam participar da captura, opõem-se a ela e lutam para
impedir isso, até serem, finalmente, vencidos. Assim, o boi fujão é levado para
o centro do curral, local em que deve ocorrer seu sacrifício. A Madrinha do
animal cobre-o com uma toalha, enquanto seu amo canta: “Se despede (diz o nome
do boi)/que tu hoje vais morrer/esse povo te olhando/mas pode te valer” Em meio a choradeiras e lamentos do bicho,
pronto para ser morto, amarrado ao mourão do curral, é finalmente sangrado.
Antes, porém, que se faça a sangria, os brincalhões fazem evoluções, com a
finalidade de distrair a platéia.
O objetivo dessas
coreografias é o de impedir que os que assistem ao espetáculo percebam que, sob
o boi, estão sendo colocadas vasilhas cheias de vinho. Tão logo o animal é
morto, seu sangue (a bebida) é distribuído entre os presentes “para dar sorte”.
E pai Francisco, preparando-se para retalhar a rês, canta: “Para onde vai a
barrigueira?/Vai pra Nita Ferreira./Para quem mandar o filé?/Manda pra Nazaré
(...)”. E assim, vai desfiando sua cantiga, rimando o nome das várias partes do
boi com o de diversas pessoas, escolhidas aleatoriamente, mas que dêem rima.
Caso minha reprodução
do enredo do “Boi bumbá” não tenha sido o que você esperava, caro leitor,
peço-lhe mil escusas. Eu lhe avisei que meu talento narrativo não é grande
coisa. Ademais, melhor do que narrar, é assistir esse folguedo que, não raro,
chega a durar até oito horas, com centenas de personagens, muito ritmo, muito
canto e complicadas e artísticas coreografias. Se tiver oportunidade de ver
alguma apresentação, não perca. Quem sabe, um dia, esse magnífico folguedo,
mesmo que de forma resumida, possa ganhar espaço na televisão, em rede nacional
(embora isso seja sumamente improvável). Mas... não custa sonhar. Só assim, o
Brasil inteiro conheceria o que é de fato seu (na verdade, nosso) e que corre o
risco de desaparecer, por falta de interesse (na verdade, por falta de
conhecimento) nosso, brasileiros.
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