Época de extremadas
paixões
Pedro
J. Bondaczuk
O florentino Benvenuto
Cellini, um dos expoentes da Renascença – período fértil de genialidade e de
gênios – é, certamente, a figura principal dessa época que, de fato, merece o
rótulo que recebeu. Em tudo e por tudo, caracterizou o vigoroso renascimento
das artes, de todas elas, após longo e monótono período (de mil anos ou mais)
de mediocridade e mesmice. A vida e a obra desse artista – cuja característica,
para o bem e para o mal, foi a paixão, tomada em ambos os sentidos – foram de
tal sorte originais, que fica muito difícil convencer o leitor de que os
episódios que venhamos a narrar a propósito sejam reais e não mera invenção,
simples frutos de exacerbada imaginação.
Todavia, como que a
conferir credibilidade aos seus biógrafos, o próprio Cellini, num pitoresco e
original livro autobiográfico, relata (portanto, confessa), de forma nua e
crua, os vários episódios em que se envolveu, de arrepiar os cabelos dos mais
realistas dos realistas. A época em que viveu foi peculiar, caracterizada por
artistas de personalidade forte e por atitudes nem sempre louváveis. Todavia, o
florentino extrapolou nesse aspecto. Paul de Saint-Victor observou a respeito,
em magnífico ensaio, que não me canso de citar: “Por suas qualidades, como por
seus defeitos, por seu talento, como por sua loucura, Benvenuto Cellini é a
mais original personificação dessa Itália artística do século XVI, que produziu
seres à parte nas sequências da história”.
Não por acaso, essa
figura excepcional (para o bem ou para o mal) e única, tem inspirado tantos
artistas, contemporâneos ou não, que a elegem ou a tomam como modelo para a
criação de personagens. Alexandre Dumas (o pai), por exemplo, inspirou-se no
artista florentino para escrever o livro “Ascanius”, sobre os anos que este
passou em Fontainebleu, na França. Hector Berlioz, por seu turno, dedicou-lhe
uma ópera de grande sucesso. E não faz muito, se não me falha a memória nos
anos 60 do século passado, Ira Gershwin e Kurt Weill produziram um bem sucedido
e badalado musical na Broadway, intitulado “The Firebrand of Florence”, tendo
as aventuras de Cellini por tema.
Sua impressionante
personalidade e seu insólito comportamento são um “prato cheio” para escritores
de todas as épocas, que se inspiram neles para a criação de personagens que os
leitores ficam na dúvida se devam ser caracterizados como heróis ou como
vilões. Saint-Víctor escreve a respeito dos artistas contemporâneos de Cellini
(e, principalmente, deste): “Estranhas criaturas organizadas para o mal e para
o gênio, para as violências do crime e para as obras da inspiração”.
Mas o ensaísta francês
tem o cuidado de contextualizar esse período de extremos: “A Itália, nessa
época, oferece o espantoso espetáculo de um ‘Pandemonium’ enobrecido e decorado
pelas artes. Tem monstros letrados e bandidos diletantes, Péricles envenenadores
e Fídias assassinos. Tigres saltam e emboscam-se nos jardins de Armida. Os
ódios são atrozes, os ressentimentos implacáveis, as concorrências se despojam
a golpes de estilete; mas um sopro divino paira sobre esta tempestade humana; a
seiva desborda e fermenta, e a Arte cresce pela força dessas paixões
desencadeadas, como o bronze toma uma forma sublime em meio das chamas e das
escórias da fundição”.
Cabe-me, agora, fazer
outra contextualização. Na época da Renascença (e da vida de Cellini, por
conseqüência) não havia um país chamado Itália. O que havia era uma
multiplicidade de principados, ducados, cidades-estados e um vasto território
sob o domínio do papado. A unificação italiana ocorreu, apenas, em meados do
século XIX. E a Igreja Católica, enquanto unidade política, ficou restrita,
através do Tratado de Latrão de 1929, ao atual Vaticano. Ou seja, às dimensões
praticamente de um bairro de Roma, e dos menores por sinal. As terras antes sob
o seu domínio, integram, hoje, a Itália unificada.
Quanto à autobiografia
de Cellini, peço licença para transcrever a seguinte informação que colhi na
enciclopédia eletrônica Wikipédia: “Cellini começou a escrever, em Florença, no
ano de 1558, um livro de memórias autobiográficas. Mostrando suas paixões, deleites,
sua arte, bem como auto-elogios e extravagância, criou um dos mais singulares e
fascinantes livros, jamais escritos, com passagens verídicas e outras
fantasiosas, crimes, anjos e demônios, na que é, certamente, a mais importante
autobiografia da Renascença”.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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