Mito do século
Pedro J. Bondaczuk
O líder nacionalista sul-africano, Nelson Mandela,
(hoje muito mais do que um político brilhante e determinado) goza de posição
bastante privilegiada. É um dos raros mitos deste século que continuam vivos.
Depois dos quase 28 anos em que permaneceu na prisão, numa corajosa resistência
à violação dos direitos humanos, ele não precisa fazer mais coisa alguma para
conservar o status de herói.
No entanto, aos 71 anos de idade, com a saúde
debilitada, evidentemente, por quase três décadas de cativeiro, esse príncipe
tribal de nascimento abriu mão de seu título e se engajou numa causa muito
maior do que a mera chefia de uma tribo, ou seja, a da criação de uma sociedade
multirracial, democrática e livre na África do Sul, em favor da qual vem
despendendo hercúleos esforços.
Daí a razão de tantas festas e homenagens por todas
as partes por onde Mandela passa. Anteontem, sua chegada a Nova York foi,
simplesmente, triunfal. Mais de 800 mil pessoas foram às ruas, num desfile em
carro aberto pela Broadway, para saudar o mito vivo.
O líder negro, assim que foi guindado ao posto de
vice-presidente do Congresso Nacional Africano, o maior grupo anti-apartheid da
África do Sul (que ele ajudou a fundar), não quis que essa função se transformasse
em algo meramente simbólico. Até poderia, por tudo o que já fez. Não permitiu,
porém, que o cargo se transformasse em outra homenagem dos inúmeros admiradores
que conquistou mundo afora.
Com a doença do presidente do CNA, Oliver Tambo (seu
amigo de juventude e que se recupera de um derrame cerebral ocorrido no ano
passado), Mandela vislumbrou um sentido prático para o prestígio pessoal que
conseguiu. Assumiu, de fato, a direção do movimento, com garra e determinação,
as mesmas que fizeram com que suportasse seu prolongado e sofrido cativeiro.
Pouco depois de haver conquistado a liberdade, em 11
de fevereiro passado, o agora ancião de 71 anos deu início a uma longa e
estafante programação de viagens e contatos políticos, envolvendo comícios,
passeatas, negociações e múltiplas reuniões. Isso tanto na África do Sul,
quanto no exterior.
Além de ser mito (o que lhe abre, automaticamente,
todas as portas), Mandela ainda fala muito bem. Domina as platéias com sua
oratória e sabe ser convincente como ninguém. Na segunda-feira, por exemplo,
levou às lágrimas os estudantes que ouviram sua preleção sobre as carências
educacionais das crianças negras sul-africanas numa escola superior de Toronto,
no Canadá.
Ontem, Nelson Mandela magnetizou os 150 líderes
religiosos norte-americanos com os quais se reuniu e aos quais apresentou seus
objetivos e sonhos. Por tudo isso, por sua determinação, coragem e espírito de
sacrifício, aliados ao seu inquestionável talento e à sua reconhecida
capacidade de liderança, este homem notável, ao qual reverencio e me curvo,
ficará, certamente, perpetuado não somente na história da África do Sul, mas na
do nosso tempo, tão pródigo em tiranos e tiranias, mas tão carente de heróis e
de heroísmos.
(Artigo publicado na página 11, Internacional, do
Correio Popular, em 22 de junho de 1990)
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