Monday, December 23, 2013

Espantoso e atemorizador

Pedro J. Bondaczuk

A figura de Benvenuto Cellini causa espanto e admiração nas pessoas que tomam conhecimento tanto da sua vida, aventurosa e marginal, quanto de sua obra, magnífica e imortal. É tão, digamos, “exagerada”, que se não houvesse sua autobiografia, intitulada “Vita”, em que confessa e descreve em detalhes, de forma inusitada pela crueza das descrições, não apenas seus êxitos artísticos, mas seus erros, aventuras (inclusive amorosas) e inúmeros crimes – tanto os homicídios que cometeu, quanto os furtos, roubos e fraudes que perpetrou – acharíamos, quase meio milênio após seu nascimento, que se tratou de personagem de ficção. E mais, daqueles que seu criador exagerou na dose, carregou nas tintas, tornando-o mais cruel e feroz do que o mais maldoso dos homens possa ser.

É impossível que uma única pessoa consiga, mesmo que escreva sua biografia em vários volumes, esgotar o assunto ao relatar sua trajetória. Como também é impossível escrever a seu respeito com neutralidade, sem fazer juízo de valor. Li uma quantidade enorme de textos sobre ele e até o momento não consegui chegar a qualquer conclusão. Não sei se a classificação mais aproximada de quem se tratou de fato é a de gênio ou de louco furioso. Se de anjo, capaz de produzir, com a magia das mãos, obras de arte sublimes, inigualáveis, que beiram à perfeição ou se demônio, feroz e sanguinário, com  vaidade sem limites que raiava à autodeificação. Se de magnífico artista, na melhor acepção do termo ou se perigoso bandido, cuja presença em sociedade era sinônimo de permanente perigo. Sou tentado a classificá-lo nos dois extremos.

As várias enciclopédias, dada até a natureza desse tipo de publicação, focalizam, preferencialmente, sua obra, à prova de reparos. Citam, esporadicamente, em um ou dois parágrafos se tanto, suas ações criminosas que, no entanto, passam batidas e que o leitor desatento sequer presta atenção. Algumas sequer mencionam esse aspecto. Provavelmente, consideram-no irrelevante. Mas seria mesmo? Creio que não!

Um dos melhores trabalhos que li sobre essa assombrosa figura (tomando, aqui, a palavra “assombro” em ambos os sentidos, tanto no positivo, que se refere à sua genialidade artística, quanto no negativo, o da sua propensão para o mal), não é nenhuma biografia, embora haja muitas excelentes, inclusive traduzidas para o português. Trata-se de uma tese universitária, de autoria de Laís Freitas de Souza, datada de 2010.

O referido trabalho acadêmico é de fim de curso, de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Ufa!!!). Recomendo-lhes que o leiam. O texto é facilmente localizável na internet. Embora seu foco seja o literário (já que esse personagem polêmico e espantoso foi também escritor, autor não apenas da citada autobiografia, mas de outros dois livros, inclusive um de poesia), dedica alguns capítulos a informações e análises sobre o homem. O título da tese sugere, por si só, qual seu foco preferencial: “A autobiografia de Benvenuto Cellini no Brasil do século XX: subsídios para estudos de tradições e adaptações”. Reitero, é uma leitura que recomendo a quem queira se aprofundar na vida e na obra dessa figura que merece, mais do que ninguém, o rótulo de “excepcional”, no sentido de originalidade em qualquer aspecto que se a analise.

Dada a natureza deste espaço, dedicado, basicamente, à Literatura, interessa-me, particularmente, na tese de Laís Freitas de Souza, o Cellini escritor, o que tentarei abordar, posto que com a forma muito sucinta que o Literário exige, nos próximos dias. Destaco, todavia, este trecho da autora, bastante esclarecedor a propósito: “A ‘Vita’ (autobiografia) não é a única produção literária de Benvenuto Cellini. Temos ainda os ‘Trattati’ e as ‘Rime’. Os ‘Trattati’, como o próprio nome sugere, ficaram mais restritos ao campo das técnicas. Afinal, registram e descrevem processos nas áreas da escultura e da ourivesaria, servindo até os dias atuais nas escolas que tratam dessas artes. Já a sua produção em versos, reunida em suas ‘Rime’ é considerada pela grande maioria dos críticos um mero passatempo de Cellini, diminuindo sua relevância em relação à sua maior produção literária: a ‘Vita’”.

Uma das coisas que mais causam admiração (entre tantas outras) refere-se a onde e como esse personagem complexo e polêmico encontrou tempo para compor sua obra literária, tendo que fugir, praticamente sem tréguas, de ferozes e poderosos inimigos buscando vingança e, sobretudo, da justiça, por suas ações marginais, à margem das leis e dos bons costumes. Laís esclarece: “A decisão de Cellini de escrever sua autobiografia só veio em idade avançada; afinal, ‘Vita” foi escrita entre 1558 e 1566, quando o artista era quase sexagenário. O início da composição de suas memórias coincide com o período em que perde a proteção do Duque Cosme I e continua se envolvendo em brigas, que o levaram a questões judiciais e a gastos desnecessários.


Em outro trecho, Laís informa> “Um pouco antes de iniciar a escrita de suas memórias... Cellini teve que voltar à prisão, em 1556, sob diversas acusações... Foi nesse período que Benvenuto Cellini escreveu quinze sonetos que o crítico (Marziano Guglielminetti) chamou de ‘spazio interiore autentico’”.

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