Verdade
ou realidade?
Pedro J. Bondaczuk
O
teatro, dada sua peculiaridade, é uma das mais nobres, difíceis e profundas das
artes e a que apresenta o maior número de variações. A cada nova apresentação
de uma peça, embora o tema central permaneça constante, há sempre nova nuança,
nova filigrana descoberta pelo ator para realçar seu personagem, nova sutileza
a ser passada ao público. Por mais parecidas que sejam as representações, elas
jamais se repetem, ao contrário dos filmes. Nunca são iguais.
Caiu-me
nas mãos um livreto, de um autor teatral campineiro, contendo originais de três
peças, à primeira vista despretensioso para quem não se dá o trabalho de ler,
mas se limita apenas a folhear um livro. Não é o meu caso, apresso-me em
ressaltar. Leio tudo o que me cai nas mãos. E não somente o que escolho
cuidadosamente, nas livrarias e nos sebos, mas, e principalmente os livros que
recebo dos autores, precedidos de pedido para que me manifeste a propósito.
Caso goste, comento sem problemas, buscando destacar o que mais me chamou a
atenção e me agradou. Caso contrário... Abstenho-me de comentar. Mas nunca
deixo de ler, tanto o que é excelente, quanto o nem tanto.
Um
dos temas enfocados no livreto, que me foi ofertado por um amigo, é o caso
Sacco & Vanzetti, que em fins da década de 20 do século passado ocupou as
manchetes dos jornais, por se constituir em tremendo erro judiciário. O autor,
Homero Martins, encarna em seus personagens. Retrata-os em suas dimensões
humanas, com as grandezas e as fraquezas inerentes ao homem.
Lendo
essa peça, e as duas que completam o livro ("O Regresso" e
"Manuel Maçores"), entende-se o que o escritor quis dizer com a
advertência que escreveu na contracapa. "A tinta que se estampa no papel,
em forma de letra, é o sangue que corre na veia de cada personagem que se
cria", constata. E é mesmo. Deveria ser sempre, em qualquer obra
literária, quer se trate de ficção ou não.
Confesso
que nunca tive a oportunidade de conhecer Homero Martins pessoalmente. Não
havia, portanto, nenhum fator subjetivo (para o bem ou para o mal) para eventualmente
distorcer minha opinião a respeito do livro, nem para adoçá-la e muito menos
para torná-la azeda ou, pior, amarga. O que senti ao ler o texto das três peças
(e ainda sinto ao relê-las) é uma familiaridade no idealismo do autor, na sua
crença nas virtudes humanas, nas suas esperanças e sonhos, presentes em cada
linha, cada fala, cada protagonista do livro.
No
prefácio, o teatrólogo Ton Crivelaro esclareceu minha dúvida sobre Homero
Martins que, pelo que me ficou claro, sobretudo, ama o teatro. Diz: "O
espetáculo era numa favela, a luz era a que iluminava a rua, o palco, um
terreno baldio que com algumas tábuas sobre o mato dava algumas condições para
a apresentação. O público, ansioso por assistir àquilo que chamava de teatro,
mas que ali, poucos conheciam. Quase na metade da apresentação surge a figura
do coronel, o seu pisar dava o compasso para que eu tocasse alguns acordes e
ele começava sua trajetória ali na favela, com a mesma preponderância exercida
no melhor teatro do País, desanichando assim toda a plenitude da personagem. O
ator era Homero Martins. Aquilo era amor pelo teatro".
Há
ainda muita confusão em torno do papel da arte na vida das pessoas. Para uns,
ela é rigorosamente supérflua. Para outros, traz a fórmula da felicidade. Todavia,
não é uma coisa e nem outra. O que ela busca, ou deve buscar, não é a
proximidade com a realidade e nem ser seu espelho. Esta, na sua crueza,
prescinde das imitações. Também não se trata de fuga do real, para um mundo
abstrato, imaginário, inexistente, meramente idealizado.
George
Bataille afirma que "há bastante grandeza no homem para que se possa
compreendê-lo a partir da sua miséria, e bastante miséria para que se possa
fazê-lo a partir de sua grandeza". O que a arte procura ressaltar é o
lampejo de divindade existente neste animal inteligente, posto que em
proporções variadas. Ou, como afirma André Gide: "Eu arrumo os fatos de
maneira a torná-los mais próximos da verdade do que da realidade".
Os
personagens de Homero Martins, em geral socialmente marginalizados, são,
sobretudo, verdadeiros. Mesclam misérias e grandezas, os dois opostos que
compõem este ser tão frágil e, no entanto, de tamanha complexidade, que é o
homem. Pena que as peças não tenham sido mais representadas em lugar algum
(pelo menos nunca mais ouvi falar delas) e o livro, de tiragem restrita, chegou
a pouquíssimas mãos de pessoas que o ignoraram e provavelmente não o leram. Da
minha parte, embora com décadas de atraso, mantenho minha coerência e teço
essas considerações sobre a obra de Homero Martins. Ignorada ou não por
terceiros, agradou-me. E, por questão de princípio e de coerência, mesmo tão
tardiamente, manifesto-me, com honestidade, a propósito.
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