Fruto de uma aposta
Não há, certamente, nenhum apreciador de Cinema que
não conheça, ou que pelo menos nunca tenha ouvido falar sobre a desengonçada,
horripilante e monstruosa figura, criada pelo doutor Viktor Frankenstein, e
“batizada” com o nome do seu imaginário criador. O personagem, que ainda hoje
mexe com a imaginação das pessoas, foi popularizado em Hollywood por Boris
Karloff, embora outros tantos atores o tenham, também, interpretado, posto que
não com o mesmo convincente desempenho.
O que quase ninguém sabe, no entanto, é que o
“monstro”, que fez gelar o sangue de gerações de cinéfilos, é fruto da
imaginação de uma delicada jovem inglesa, que nada tinha de mórbido ou de
perverso em suas idéias e atitudes, esposa de um consagrado poeta romântico da
Inglaterra do século XIX que, por sua vez, também não era dado a
monstruosidades e aberrações em seus poemas, caracterizados pela delicadeza e
pelo lirismo.
Tanto a monstruosa figura, pré-fabricada em
laboratório com partes de cadáveres roubadas de um cemitério, quanto o imaginário
Dr. Viktor Frankenstein, autor da “façanha” científica, de “vitória” sobre a
morte, foram “inventados”, apenas, por
causa de uma inocente aposta entre amigos.
Sua criadora foi a escritora Mary Shelley, casada
com Percy Shelley, que teve morte trágica, já que se afogou, quando velejava na
Baía de Spezia, no Mar Tirreno. Em 1816, a romancista inglesa, então com 19
anos de idade, passava uma temporada de férias na Suíça, com o namorado, que
viria a ser seu futuro marido, num aconchegante chalé, às margens do Lago
Lehman. Certa noite, o casal recebeu duas ilustres visitas: Lorde Byron, amante
inveterado de histórias e de assuntos mórbidos, e um médico italiano, conhecido
apenas como Dr. Polidori.
Durante horas, não se falou de outra coisa que não
fossem fantasmas, almas de outro mundo, evolucionismo e experiências
científicas de tentativas de reprodução da vida humana em laboratório. Quando
escritores se reúnem, mais cedo ou mais tarde, a conversa acaba descambando,
invariavelmente (salvo raríssimas exceções), para a literatura. Foi o que
aconteceu na ocasião.
Em determinado momento, Shelley, Byron e Mary
fizeram uma aposta sobre quem conseguiria escrever a história mais
horripilante, ou mais fantástica, ou mais convincente sobre a criação (ou a
reprodução) da vida em laboratório e as possíveis conseqüências desse ato. O
normal é que tudo não passasse de uma conversa sem compromisso e sem
conseqüência, que no dia seguinte estivesse esquecida. Não foi, no entanto, o
que aconteceu. Os três levaram mesmo a sério o desafio e puseram mãos à obra.
Passado algum tempo, estipulado pelos apostadores, o trio
confrontou os respectivos textos, tendo o Dr. Polidori como árbitro, para ver
qual era o mais assustador. A lógica indicava que o vencedor deveria ser, até sem
nenhum esforço, Lorde Byron, que apreciava o gênero e tinha enorme facilidade
em escrever sobre o tema. Não foi, todavia, o que ocorreu.
Para surpresa geral, a história escolhida foi a da
supostamente frágil e romântica garota inglesa, mal saída da adolescência, cujo
enredo, convenhamos, nada tinha de delicado ou de piegas conforme a expectativa
dos seus dois adversários. Dessa forma, nascia um clássico da literatura de
terror, que teria no norte-americano Edgar Allan Pöe seu expoente maior na
literatura mundial.
Em 1818, dois anos após o desafio, Mary resolveu
publicar o romance. Byron, tido como mau perdedor, que detestava perder
apostas, ainda mais para mulheres, e principalmente quando estas envolviam
literatura, desta vez teve que se curvar à imaginação lúgubre e mórbida de uma
mocinha.
Em carta escrita ao casal, após a edição do livro, o
poeta e aventureiro concluiu: “Trata-se de um excelente trabalho para uma moça
de 19 anos”. É mister não se esquecer que os fatos ocorreram em 1816, início do
século XIX. Recorde-se que, na época, a mulher estava longe de poder competir,
em pé de igualdade, com o homem, fosse no que fosse. Era tida como ser
“inferior” e seu papel social restringia-se ao lar, ao cuidado do marido e dos
filhos e, quando muito, às fúteis reuniões sociais dos salões da moda.
Ademais, ninguém poderia imaginar (muito menos Mary
Shelley, sua criadora), que um personagem, nascido de uma simples brincadeira,
de uma aposta sem maior importância entre amigos, fosse ter o destino que teve.
Ou seja, que iria conquistar a imortalidade literária. O romance tornou-se
grande clássico – senão o maior –, das histórias de terror. Hoje, rivaliza
(supera muitos deles), com os livros do consagrado “pai dos contos de mistério
e de terror”, Edgar Allan Pöe. As grandes obras, como se vê, nem sempre são as
planejadas nos mínimos detalhes pelos autores. Muitas, como esta, não passam de
frutos apenas das circunstâncias e do acaso. Ou, para ser mais específico, de
mera aposta.
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