Thursday, July 04, 2013

Direto do Arquivo

Situação de calamidade 

Pedro J. Bondaczuk

A situação econômica e social em El Salvador, que já era de suma gravidade antes da ocorrência do devastador terremoto da semana passada, que arrasou 75% da capital desse país, se tornou calamitosa. Sete anos consecutivos de guerra civil causaram danos irreparáveis à população dessa República centro-americana, lançando-a na miséria.

Conforme inúmeros relatórios de entidades internacionais, antes do sismo, 75% dos salvadorenhos viviam abaixo das condições mínimas de pobreza. Ou seja, mal sobreviviam, subnutridos, desasssistidos em termos de saúde pública e entregues à própria sorte. Ou melhor, ao próprio azar, sem poderem contar com nenhum tipo de assistência, particular ou estatal. E agora? O que será dos habitantes desse país, o menor, em extensão territorial da América Central e o mais populoso da região?

Outra pergunta que se impõe é: qual a atitude que os países que apóiam o governo local, armando-o até os dentes para combater a guerrilha, adotarão, para socorrer seus habitantes? Os Estados Unidos, por exemplo, que se orgulhavam tanto porque El Salvador promoveu uma eleição presidencial – que a oposição jura ter sido um jogo de cartas marcadas – sob o seu patrocínio (claro), mesmo com uma sangrenta luta armada em andamento (que já custou a vida de entre 50 mil a 70 mil salvadorenhos) vão socorrer a população? Se a resposta for positiva, qual a faixa a ser socorrida, a que apóia o governo de direita ou também os que se opõem a ele, de armas na mão? A resposta parece mais do que óbvia.

Ademais, que tipo e em que quantidade será essa ajuda (claro, na hipótese de que será, de fato, prestada)? Enviará meras “migalhas” emergenciais ou dará um socorro mais amplo, amparando e fragílima economia salvadorenha? É verdade que o “pouco” que os norte-americanos venham a oferecer ainda é melhor do que o “nada” oferecido por outras potências ocidentais.

El Salvador, endividado até o pescoço com os banqueiros do Ocidente, por causa dos sucessivos empréstimos feitos para se armar, com o objetivo de combater a guerrilha; com as exportações dos seus três únicos produtos (café, algodão e açúcar) reduzidas à metade; com a balança comercial crescentemente deficitária; com uma evasão dos parcos capitais equivalente à metade do seu Produto Interno Bruto e com uma taxa de desemprego e subemprego superior a 75% da população economicamente ativa, estava sobrevivendo, até aqui, com os parcos US$ 350 milhões anuais da ajuda proveniente dos Estados Unidos. E apenas com isto!

Essa quantia, evidentemente, é uma ninharia e os mais necessitados (a maioria absoluta da população) com certeza jamais viram e nunca verão sequer a cor desse dinheiro. Se a situação já era tão calamitosa antes que a terra tremesse e que, “em seis segundos trouxesse mais prejuízos que os sete anos de guerra civil” – conforme palavras do presidente José Napoleon Duarte – agora adquire configuração de tragédia nacional. E que tragédia!

Os prejuízos materiais causados pelo terremoto foram estimados até aqui (bastante por baixo) em pelo menos US$ 1,8 bilhão. As cifras finais, quando terminarem as tarefas de resgate e os levantamentos dos danos causados pelo sismo, devem chegar a pelo menos o dobro dessa quantia. Ou seja, o montante de todo o PIB salvadorenho (a riqueza gerada por todos os seus cidadãos ao longo da sua existência).

Para complicar tudo, o conflito armado está muito longe de acabar. Isso porque, a despeito de todas as demonstrações feitas por hábeis estrategistas militares, demonstrando que não há condições para que qualquer das partes em conflito vença a guerra civil, ambos os lados se mostram dispostos a ir às últimas conseqüências. Não por razões práticas e muito menos, óbvio, pelo alegado sentido de patriotismo.

As razões são, simplesmente, subjetivas. Prendem-se a estúpidas motivações ideológicas, como se um conjunto de enunciados filosóficos enchesse a barriga de quem quer que seja. Os salvadorenhos, certamente, estão pouco se lixando com as teorias ultrapassadas (afinal, já são centenárias) de Karl Marx. Ou com os postulados de Keynes ou de qualquer outro economista capitalista.

O que a população desse país reivindica é muito simples e justo. É o direito ao trabalho e à conseqüente justa remuneração. É o acesso ao ensino, à saúde pública e à esperança de que pelo menos seus descendentes venham a ter um padrão de vida mais digno, num clima de liberdade política e de justiça social. Que sistema ideológico vai lhe proporcionar tudo isso, para ela, é irrelevante!

A concentração de renda em El Salvador sempre foi um escândalo. Antes da guerra civil, se dizia que toda a riqueza nacional pertencia a, somente, 21 famílias. O restante... tinha que se contentar em viver de migalhas. Era lógico que essa situação não poderia perdurar indefinidamente, sem que houvesse reação, por ser imprudente, impudica, imoral e ilógica.
No entanto, os tais defensores “da democracia e da liberdade” nunca fizeram nada para pressionar os governos ditatoriais desse país para que fizessem as mudanças necessárias que proporcionassem qualquer redistribuição de renda. O conflito armado, por conseqüência, era mera questão de tempo.

Se não eclodisse em 1979, ocorreria no ano seguinte, ou no outro, ou no outro... O que vai acontecer aos salvadorenhos, doravante, vai depender muito da sinceridade das potências que têm condições (e obrigação) de os ajudar. E não apenas enviando suprimentos e medicamentos, mas, sobretudo, se empenhando de verdade pela conciliação nacional. E esta somente será possível com o estabelecimento de regras políticas, econômicas, jurídicas e sociais justas e negociadas, que permitam uma convivência harmoniosa e construtiva entre todos os cidadãos do país.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 18 de outubro de 1986).


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