Tuesday, July 23, 2013

Arquitetura da prosa


Pedro J. Bondaczuk


Em 2004, publiquei, em determinado jornal – que não vem ao caso identificar – e posteriormente em alguns dos vários espaços de que disponho na internet, uma crônica que gerou bastante controvérsia. Não entre leitores, apresso-me a esclarecer, dos quais recebi inúmeros elogios para satisfação do meu ego. Fui criticado, isto sim, em alguns dos círculos literários que freqüento. Ou seja, por colegas da mesma função. O cerne da controvérsia foi minha afirmação que a prosa, para gerar o efeito que pretendemos, tem que primar, sempre, por duas características básicas: clareza e simplicidade.

Ao leitor pode parecer o óbvio (e entendo que de fato é), mas muitos escritores não entendem as coisas dessa forma. Desmancham-se em floreios, em seus textos, no que costumo chamar ora de “pirotecnia verbal”, ora de verborragia, em simples crônicas ou em contos, em detrimento, quase sempre, da compreensão. O engraçado é que depois reclamam que não são lidos, atribuindo o fato à falta de gosto do brasileiro para a literatura.

Ocorre que abusam tanto de metáforas, não raro estapafúrdias e até surreais, em textos de prosa, utilizam-se de tantas palavras há muito caídas em desuso, apenas para mostrar pretensa erudição, que ao cabo da leitura do que escreveram, ficamos sem saber o que pretendiam dizer. Esquecem-se que literatura é, antes e acima de tudo, comunicação. Mas eles não comunicam rigorosamente nada, embora escrevam e, não raro, muito mais do que os temas que abordam requerem.

Iniciei a tal crônica, que agradou os leitores e foi desaprovada pelos colegas escritores, citando o polêmico, mas para mim genial, Ernest Hemingway (tanto que conquistou merecidíssimo Prêmio Nobel de Literatura). O autor de “Adeus às armas” observou: "Prosa é arquitetura e não decoração interior". Ou seja, o controvertido romancista advertiu os que pretendem se comunicar através da difícil arte do texto que este deve ser, antes de tudo, funcional. Deixou implícito que sua beleza nasce da harmonia, da clareza e, sobretudo, da capacidade do redator de passar um recado e nunca da complexidade das palavras. Óbvio que, quanto mais claro este for, com mais precisão será cumprido o objetivo essencial da literatura: o de comunicar um fato, uma idéia, um perfil, um princípio etc.

Para tanto, o texto não pode se ater apenas à forma, embora esta seja importantíssima, notadamente no que se refere à correção gramatical, que é indispensável. Precisa ter conteúdo, e que seja original, que acrescente algo ao leitor e transmitido de tal forma que atraia esse ditador implacável, em cujas mãos estão tanto o sucesso quanto o fracasso de quem vive de escrever: o leitor. Se ele não entender a mensagem ou se não gostar da maneira como foi transmitida, estaremos fritos. Restará ao suposto cultor das belas letras, mudar de atividade.

Gustave Flaubert destacou que "quando se possui a idéia, a palavra jamais há  de faltar". Mas, e quando esta não existe? Quando se pretende, por exemplo, redigir uma crônica que, por sua própria definição, se caracteriza pela leveza, pela descontração, pelo vislumbre de perenidade no que é trivial, aparentemente sem importância, como as circunstâncias do dia-a-dia, ou um objeto absolutamente comum, ou uma emoção corriqueira? Como agir? Aí é que está o problema.

Em circunstâncias como esta, a opção está na simplicidade e não no oposto, a complicação (caminho escolhido por muitos escritores). O redator tem que definir o que deseja transmitir ao leitor. Caso tenha a idéia, e esta seja correta, inovadora, à prova de contestações, palavras é que não faltarão. A escolha, todavia, deve recair, sempre, sobre os termos mais simples, de domínio comum, que sejam inteligíveis a qualquer pessoa alfabetizada (ademais, o analfabeto, por razões óbvias, jamais lerá seu texto), quer se trate de um mestre de Literatura, quer seja um engraxate, um gari ou um porteiro, não importa. O importante não é exibir erudição (supondo que se tenha, é claro), mas comunicar a ideia que se pretende com absoluta clareza e sem a mínima ambigüidade.

Escrever simples é muito mais complicado do que possa parecer aos desavisados. É uma complicação, e das grandes. E não somente para mim, para você, para seu colega ao lado ou para seu vizinho, mas para escritores com muito mais talento e vivência literária do que todos nós reunidos. É o caso de Paulo Mendes Campos, por exemplo, autor de tantos livros e textos publicados em grandes revistas nacionais e internacionais, que constatou: "Quem tem facilidade de escrever, não é escritor: é orador". É um consolo para este jornalista veterano e cronista (modéstia a parte) tarimbado (mas sempre apavorado diante de uma página em branco). Como encontrar um tema que seja, ao mesmo tempo, leve e que fascine o leitor? Como agradar esse ditador anônimo, mas implacável, cuja opinião nos é tão importante?

Scott Fitzgerald dá uma dica: "Você tem que vender seu coração, suas reações mais poderosas, e não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderá  contar ao jantar". Ou seja, é preciso um desnudamento emocional, mesmo que tenhamos escrúpulos em nos desnudar publicamente, em deixar à mostra nossas mais secretas angústias, nossos mais profundos receios e nossas mais protegidas esperanças, temerosos, quem sabe, do ridículo, ou de sermos acusados de cometer um atentado ao pudor. Em última instância, é imprescindível sinceridade. E sem esquecer a paixão pelo que se faz. Se você não gostar de escrever, esqueça. Procure outra atividade menos complicada e potencialmente menos frustrante.

Por essa razão, não é sem motivo que uma tela em branco do visor do meu microcomputador (até pouco tempo atrás era uma lauda em branco), me causa tamanho terror. Há momentos em que fico à beira do pânico. Com o quê preencher todo esse espaço? O quê escrever, sem descambar para o ridículo ou para o bla-bla-blá pomposo, mas sem conteúdo? Com quais ingredientes compor uma crônica?

Respondo: com sangue, com vísceras, com alma, com vivência, com vida. Tenho, desde que cismei que era cronista (e isso já faz um tempão, uma eternidade) diariamente, uma experiência semelhante (guardadas as devidas proporções) àquele episódio bíblico em que o patriarca Jacó lutou com um anjo até o romper do dia, no Vale de Jaboc, para ser abençoado. Procuro a bênção de um tema, da clareza, da empatia e da capacidade de persuadir o leitor. Daí a opção que adotei na citada crônica de 2004, ou seja, a conformação arquitetônica desse texto, em detrimento da “decoração”, porque o que importa é comunicar e não “enfeitar” ideias.


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