Amizades que viraram
inimizades
Pedro
J. Bondaczuk
O filósofo católico
francês, Jacques Maritain, escreveu certa feita: “Cada ser humano é um
indivíduo como o animal, a planta, o átomo, fragmento de uma espécie, parte
singular da imensa rede de influências cósmicas, étnicas e históricas que o
dominam. E ao mesmo tempo é uma pessoa, quer dizer, um universo de natureza
espiritual, dotado de livre-arbítrio e, como tal, um todo independente em face
do mundo”. E não estava certo? Estava certíssimo.
Ao longo do tempo, uma
quantidade imensa de pessoas – milhares, quiçá milhões – passa, aleatoriamente,
por nossas vidas, como sombras. A imensa maioria não deixa o menor vestígio
dessa passagem. E delas não conseguimos lembrar rigorosamente nada, nem mesmo ligeiro
esboço de seus traços fisionômicos. Algumas, raras, prejudicam-nos, de alguma
forma e há, até, as que podem causar nossa morte. É o tipo que melhor seria
jamais ter cruzado nosso caminho. Há, porém, as que deixam marcas profundas em
nós. São as pessoas que amamos e que, por isso, passam a integrar,
inseparavelmente, nossa história. São as que se tornam nossas amigas. Essas
amizades podem ou não durar. Às vezes, extinguem-se naturalmente, em geral,
pela separação física (mudança de cidade, morte etc.) sem deixar mágoas e nem
saudades. Algumas, porém, terminam deixando um rastro de ressentimentos,
decepções e mútuas recriminações.
Prefiro ter sempre em
mente o que o advogado, filósofo e senador do Império Romano Sêneca lembrou a
propósito, ao afirmar: “É impossível fazer de todos os homens nossos amigos. É
já ventura bastante conseguir que eles não sejam nossos inimigos”. Esta é, pelo
menos, a expectativa mais prudente, se não a mais realista.
É raro encontrarmos
alguém que nunca tenha tido algum tipo de amizade, mesmo que não íntima ou nem
mesmo duradoura. Não afirmo que não exista tal indivíduo, pois se o fizesse,
estaria incorrendo em uma generalização, baseada, apenas, em presunção pessoal,
o que me exporia ao iminente risco de erro, o que me empenho em evitar. A
maioria (presumo, no entanto, que seja a totalidade, embora não jure e nem
afirme) teve, ou tem ou terá algum amigo, em algum tempo e em algum lugar.
Sigmund Freud, como
homem público, como a personalidade até histórica em que se tornou, teve, em
sua longa vida, várias amizades. Muitas, talvez, fossem interesseiras, para
explorar seu inegável prestígio. Nunca se sabe. E não haveria surpresa alguma
nisso, pois é a coisa mais comum com qualquer pessoa de destaque ma sociedade.
E o “interesse” poderia ser de parte a parte. Tanto de Freud, em relação a
esses “amigos” nos quais vislumbrasse a possibilidade de obter alguma vantagem,
quanto o oposto (mais provável, por sinal), pelo mesmo motivo.
Duas dessas amizades,
porém, se destacam e são amiúde citadas, toda vez que alguém se refere à
trajetória pessoal e, sobretudo, à vida do “Pai da Psicanálise”. São as que
manteve com Josef Breuer e com Wilhelm Fliess. E foram de tal sorte
importantes, sobretudo na carreira de Freud, que merecem ser tratadas de forma
separada, individualizadas, com um capítulo todo para cada uma delas. É o que
farei. Considerem, pois, estas reflexões de hoje mero preâmbulo para uma
análise mais detalhada desses amigos e da natureza e importância dessas
amizades.
Tanto Breuer, quanto
Fliess eram médicos, o que não chega a surpreender (muito pelo contrário), já
que as nossas amizades mais comuns, ou pelo menos as mais frequentes, são as
que mantemos, via de regra, com pessoas que tenham interesses iguais ou, no
mínimo, semelhantes aos nossos. E, não raro, a mesma profissão. Claro que não
se trata de nenhuma regra, pois essa questão não é regulamentada, embora seja
algo lógico e previsível.
Qual dos dois Freud
considerou “mais” amigo? Não se pode afirmar, por mais evidências que tenhamos
a propósito. Apenas podemos especular. Só ele poderia responder a essa pergunta
(ou talvez não), mas, ao que consta, nunca se pronunciou a propósito. A lógica
indica ser provável que tivesse maior afinidade com Breuer, até pela identidade
racial e religiosa. Afinal, ele era judeu, como Freud. Seu pai, Leonard Breuer,
era professor de religião na comunidade judaica de Viena. E não somente isso.
Josep foi o verdadeiro
criador do método psicanalítico, ou seja, o de induzir, mediante perguntas
oportunas e pertinentes, os pacientes a falarem a propósito dos males que os
afligiam, para chegar à raiz dos traumas que os causavam. Substituiu, portanto,
a hipnose na terapia, que não mostrava a mesma eficácia. Freud incorporou, com
a anuência e incentivo de Breuer, à sua prática, essa técnica. Todavia, com uma
mudança, que foi justamente o que causou estremecimento e posterior ruptura da
amizade. Além desse aspecto profissional, foi uma espécie de Mecenas do amigo
terapeuta, sempre às voltas com dificuldades financeiras. Foi, por sinal, quem
“financiou” seu casamento com Martha.
Fliess, por seu turno,
era uma espécie de “revisor” dos textos de Freud, antes deste encaminhá-los aos
editores. Ambos mantiveram copiosa correspondência, que ascendia às centenas, o
que atesta a profundidade dessa amizade (enquanto durou). Infelizmente (para a
posteridade), o “Pai da Psicanálise” destruiu todas as cartas recebidas do
então amigo, tão logo ocorreu o rompimento. As que restam são as que Fliess
recebeu e não as que escreveu. Nesses dois casos, todavia, há um ponto em
comum. Ambas amizades transformaram-se em acérrimas inimizades, com uma
infinidade de ressentimentos e recriminações, de parte a parte.
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