Discípulo que nunca conversou com o mestre
Pedro
J. Bondaczuk
A palavra “discípulo” nem sempre (diria quase
nunca) é interpretada em seu real significado, pelo menos não em todas suas
acepções. Sugere – sobretudo aos que não têm o hábito de questionar e aceitam
tudo a priori – que aquele que ostenta essa condição, “conhece” seu mestre
pessoalmente e mais, convive com ele e segue-o onde quer que vá. Certo? Errado.
De fato, o conhecimento pessoal é uma das situações possíveis, mas não é
indispensável. O Wikcionário (dicionário da enciclopédia eletrônica Wikipédia)
define da seguinte maneira a palavra “discípulo”: “aquele que aprende, ou
recebe instrução de alguém; aluno, estudante; aprendiz; seguidor de uma
doutrina”.
Por este último significado, portanto, posso
seguir determinada linha de pensamento de alguém sem, necessariamente, conviver
com seu autor ou sequer conhecê-lo pessoalmente. O leitor deve estar torcendo o
nariz, achando que cismei de polemizar outra vez e em um tema que não comporta
polêmica. Asseguro que não. E comprovarei na sequência. A Wikipédia caracteriza
a palavra da seguinte maneira: “Discípulo é
aquele que segue outrem em suas ideias, atitudes, posições ideológicas e
determinações existenciais. Resumindo discípulo é aquele faz tudo o que seu
mestre quer e crê em tudo o que ele diz e tem o desejo de ser igual a ele”.
Vocês acham que isso não é possível? Pois eu provo que é. O psicanalista
André Green é considerado um dos mais fieis e intransigentes discípulos de
Sigmund Freud. Inúmeras vezes foi criticado por essa irrestrita fidelidade e
por elaborar toda sua obra baseada completamente nos princípios freudianos sem
jamais se afastar, em ponto algum, deles. Todavia, jamais se encontrou
pessoalmente com seu guru. Um nunca chegou a conhecer o outro. Em ocasião
alguma, portanto, estiveram cara a cara. Nunca conversaram, jamais se
corresponderam e não mantiveram o mínimo contato um com o outro. E nem poderiam
se encontrar. Não, pelo menos, na condição usualmente entendida de mestre e
discípulo. Sabem por que?
Quando Freud morreu, em Londres, vitimado pelo câncer, André Green tinha,
apenas, doze anos de idade (nasceu em 12 de março de 1927)! E mais, concluiu
seu treinamento psicanalítico apenas em 1965! Aliás, ele ainda estava em
atividade há somente dois anos, portanto, em pleno século XXI. André Green
morreu em 2011, quando Freud já era (e é) considerado praticamente apenas um
mito e nem tanto o notável pioneiro das pesquisas sobre o funcionamento e os
desarranjos da mente de carne e osso. No entanto... é tido e havido (pois de
fato foi) discípulo, e fidelíssimo, do “Pai da Psicanálise”. Por esta vocês não
esperavam, não é mesmo?
A vida de André Green apresenta uma série de peculiaridades, além da que
citei. Seu nome, por exemplo, sugere descendência inglesa ou algo que o valha.
Nasceu, no entanto, no Cairo, ou seja, no Egito. No fundo da alma sentia-se
francês e foi na França que desenvolveu brilhante carreira. Tinha em comum, com
Freud (além das ideias, que abraçou com tanto entusiasmo) o fato de ser judeu,
como o mestre. O pai, sefardita, era originário de Portugal e a mãe, da mesma
facção, era proveniente da Espanha.
Recorro à excelente
resenha escrita pela psicanalista Isa Lopes Paniago, da Sociedade de
Psicanálise de Brasília, para apresentar um resumo da a contribuição de André
Green para essa hoje consolidada disciplina psiquiátrica. Ela destaca, em
determinado trecho: “Sua obra é reconhecida pela importância, pelo volume de suas publicações
em livros, artigos e conferências e, também, pela diversidade e originalidade
dos temas tratados. É uma obra muito complexa em sua formulação, traçada na
abordagem rigorosa da teoria freudiana. Green divide sua produção em dois
grandes grupos: os trabalhos de psicanálise pura e aplicada. Refere-se à psicanálise
aplicada ao texto literário, que considera como uma forma de prosseguir sua
própria análise. Descreve que Shakespeare certamente desempenhou para ele papel
de analista. O texto literário funciona como um objeto transicional, que
permite ao analista aumentar o conhecimento de si mesmo. As grandes obras tocam
o inconsciente de maneira profunda. Seu livro ‘O Desligamento’ é um exemplo
desse grupo”.
Só por esse último aspecto, seu nome é
obrigatório de ser citado em um espaço como este, voltado à Literatura. Quem
diria! Então o texto literário constitui-se em importante peça para a
psicanálise (no caso, a nossa, de leitores)?! Bem que eu desconfiava! Para não
deixar você no ar, acrescento mais este trecho da resenha feita por Isa Lopes
Paniago sobre a obra de André Green: “Nos trabalhos teóricos e clínicos,
aprofunda-se na metapsicologia freudiana e trabalha temas como o afeto, os
casos-limite, a clínica do vazio, a teoria do negativo, o narcisismo negativo,
a alucinação negativa, a psicose branca, o irrepresentável e a pulsão de morte,
a mãe em todos os seus estados - mãe morta, mãe fálica, mãe negra, e a
terceiridade, temas em que contribui profundamente com a psicanálise
contemporânea”.
Fico matutando com meus botões: com o
advento e popularização da internet, é possível (não sei se provável) que
tenhamos uma infinidade de “discípulos” (pelo menos potenciais) espalhados por
aí, mundo afora, sem que nem mesmo desconfiemos. E eles, provavelmente, jamais
manterão qualquer espécie de contato conosco. Não é fascinante (se não
preocupante)?! Já pensaram que tremenda responsabilidade a que temos na
veiculação de nossas idéias?!!!
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