Convicção e
perseverança
Pedro
J. Bondaczuk
A austríaca Melanie
Klein é uma das personagens mais fascinantes da história da psicanálise e não
apenas como profissional competente, criativa e genial, mas também como pessoa
de fibra. Para mim, suas principais virtudes foram: convicção e perseverança. Imaginem
a ousadia que era, nos anos iniciais do século XX, uma mulher ter a pretensão
de estudar e de competir em alguma profissão tida e havida, na ocasião, como
exclusivamente masculina! Não era tarefa para qualquer uma. Sofreria, caso
ousasse encarar o desafio, ferrenha oposição, e de todas espécies e todos
lados, a começar pela da família. E não raro (na verdade, sempre) acabava
estigmatizada pela sociedade.
Melanie, contudo,
desafiou preconceitos e tabus e firmou prestígio como um dos nomes mais relevantes
da história da psicanálise. Há quem diga que ela contestou as idéias de Sigmund
Freud. Bobagem. O que fez, de fato, foi dar continuidade aos estudos e
descobertas dele, contribuindo para um entendimento mais amplo e mais claro da
mente, do seu funcionamento, de seus desarranjos e de como curá-los.
Considero-a – e ela é hoje considerada dessa forma pela maioria dos entendidos
na matéria – como psicanalista posfreudiana. Em vez de contestar as idéias do
“Pai da Psicanálise”, aprofundou-as, partindo de onde ele parou. E comprovou
sua exatidão, mediante experiências práticas bem sucedidas.
Não bastasse ser mulher
e, por essa razão, ter todas as portas da ascensão profissional fechadas,
Melanie era, para complicar ainda mais suas pretensões, judia. Isso tornava-a alvo de preconceito muito mais
exacerbado e cruel, em uma Europa eminentemente racista e preconceituosa
(desconfio que ainda seja atualmente, posto que sob eufemísticas camuflagens),
que atribuía aos semitas a responsabilidade de praticamente todos os males do
mundo. E a repulsa social a eles chegou a ponto de, anos depois (poucos), os
nazistas elaborarem e porem em execução o sinistro e absurdo plano criminoso,
conhecido como “Holocausto”, para simplesmente varrer essa etnia do mapa. Quase
conseguiram.
Melanie Klein nasceu em
Viena, em 30 de março de 1882, quando Sigmund Freud já era adulto e quando. aos
26 anos de idade, já se empenhava em suas pesquisas psicanalíticas. Ela viria,
porém, a conhecer pessoalmente esse mestre apenas em 1920, em um congresso
psicanalítico realizado em Haia, na Holanda. Acho pitoresco o fato de, mesmo
tendo nascido na mesma cidade em que o notável psicanalista desenvolveu toda
sua carreira – e que só deixou em 1938 para refugiar-se em Londres – o encontro
ter demorado tanto tempo para acontecer. Ou seja, quando Melanie já tinha 38
anos de idade, prestes a iniciar a própria carreira. Mais estranho ainda foi o
fato dele ter acontecido fora de Viena e até da Áustria. Ironia das
circunstâncias.
Melanie, contudo, já
conhecia, na ocasião em que se encontrou com ele, a obra de Sigmund Freud, com
a qual entrara em contato em 1916, quando residia em Budapeste, e pela qual
ficou fascinada. Na época ela foi analisada por Sandor Ferenczi, que a
estimulou a iniciar o tratamento de crianças, que veio a se tornar sua
especialidade. Para chegar até aí, todavia, teve que superar inúmeros
obstáculos, de diversas naturezas, o que fez com muita garra e coragem. E,
sobretudo, com inteligência.
Melanie, desde tenra
infância, conviveu com a rejeição e a tragédia em família. Seus pais, embora
brilhantes nas respectivas funções, não se entendiam. Viviam brigando. Ainda
assim, geraram vários filhos. Ela era a quarta deles. Sentia-se indesejada e os
pais davam-lhe seguidas mostras que não a desejavam mesmo. A mãe, Libussa,
judia eslovaca de personalidade forte, era pessoa de difícil trato. Era
tirânica, possessiva, destrutiva até e se intrometia o tempo todo na intimidade
de Melanie. Mas nunca para ajudar. Para complicar as coisas, e gerar-lhe o
complexo de culpa que a perseguiria por muitos anos (sobre o qual discorreria
mais tarde em seus livros), teve que conviver com diversas tragédias
familiares.
Quando tinha só quatro
anos, por exemplo, testemunhou a morte da irmã, Sidonie, vitimada pela
tuberculose, aos oito anos de idade. Melanie sentiu-se culpada por isso,
embora, evidentemente, não fosse e nem pudesse ser. Já moça, aos 18 anos,
perdeu o pai, debilitado há muito tempo por uma prolongada doença cardíaca.
Ficou sob a tutela da mãe, que não compreendia e nem era compreendida por ela.
Mas não foi só. Quando estava com vinte anos, perdeu o irmão Emmanuel, com o
qual tinha fortes laços afetivos e que a influenciou muito para que estudasse e
exercesse a profissão que viesse a escolher. Essa perda foi particularmente
dolorosa, porque testemunhou todo o processo de decadência física, moral e
psicológica dessa pessoa de que tanto gostava, sem poder fazer nada para deter
o processo. Emmanuel morreu em decorrência do esgotamento causado por uma
doença incurável, pelo desespero e, principalmente, por causa das drogas em que
se viciou.
Aos 14 anos, Melanie
interessava-se por Artes. Todavia, decidiu seguir a profissão do pai, que era
médico. Não chegou, no entanto, a completar o curso. Abandonou-o ao meio, aos
21 anos, ao se casar com Arthur Klein (provavelmente influenciada por ele).
Após o casamento, resolveu retomar seu projeto original e cursar Artes e
História na Universidade de Viena. Também não chegou a se graduar. Decidiu,
finalmente, contentar todo o mundo e assumir o papel então atribuído às
mulheres: o de mãe e responsável pela educação das crianças e gestão da própria
casa. Mas não por muito tempo. Teve três filhos. Com o passar dos anos, no
entanto, após conhecer a obra de Freud, concluiu que era o que pretendia ser na
vida: psicanalista. Preparou-se para isso, ignorou o preconceito, superou uma
infinidade de obstáculos, abriu mão de uma série de preferências e privilégios
e tornou-se, afinal, o que se propôs a ser. Ou seja, a maiúscula personagem que
foi, até sua morte (ocorrida em Londres, aos 78 anos, em 22 de setembro de
1960), no complexo e competitivo campo da psicanálise.
No comments:
Post a Comment