Centenário do Rei da
Valsa
Pedro
J. Bondaczuk
O rádio, na primeira
metade do século XX, consagrou inúmeros artistas populares – cantores,
compositores e músicos – tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. O caso
norte-americano deixarei de lado, por não ser pertinente ao assunto que vou
tratar. É oportuno lembrar, antes de entrar direto no tema a que me propus
abordar, que a primeira transmissão radiofônica entre nós se deu exatamente
durante os festejos alusivos ao centenário da nossa independência nacional, em
7 de setembro de 1922. Portanto, os artistas anteriores a essa ocasião, não se
beneficiaram do alcance e da abrangência desse então revolucionário veículo de
comunicação de massa.
Mesmo com o benefício
do rádio, foram poucos os cantores de música popular que sobreviveram ao tempo
e ao esquecimento e que são lembrados e reverenciados hoje em dia. Destacaria,
nesse seleto rol, nomes como Francisco Alves (que, guardadas as devidas
proporções, na sua época foi tão popular quanto ainda é hoje Roberto Carlos),
Orlando Silva (que por motivos óbvios, ficou conhecido como “o cantor das
multidões”), Sílvio Caldas (“o caboclinho querido”), Vicente Celestino, com seu
característico vozeirão e... Carlos Galhardo, o “Rei da Valsa”. É sobre este último
que irei tecer alguns comentários. E farei isso não por capricho ou por mero
acaso. É por um motivo muito especial. Explico: neste mês de abril, completa-se
o centenário de nascimento desse ídolo das multidões, notadamente nas décadas
de 40, 50 e parte da 60 do século XX.
A biografia desse
artista, rigorosamente desconhecido das novas gerações, mas lembrado com
saudades pelos contemporâneos – boa parte dos quais o elegeu como o cantor de
sua preferência – apresenta uma série de peculiaridades (diria curiosidades)
que, mesmo se não fosse famoso, como foi, justificaria ser trazida à baila.
Analisemos por partes, para que o texto tenha um mínimo de coerência. O
primeiro ponto digno de destaque refere-se ao nome. Carlos Galhardo foi o
pseudônimo artístico que adotou. Nos seus documentos, porém, constava: Catello
Carlos Guagliardi. Já imaginaram um locutor anunciando-o dessa forma? Ademais,
dificilmente os fãs memorizariam seu nome de batismo, mesmo sendo tão original
e talvez único. Não conheço nenhum outro Catello, nem entre cantores e nem em
outra atividade qualquer. Você conhece, caríssimo leitor?
Bem, não é nada raro
(aliás é bastante comum), artistas adotarem nomes artísticos mas, ainda assim,
a menção a esse fato não deixa de ser pertinente. O outro aspecto da sua
biografia que considero digno de nota, é o da sua nacionalidade. Embora fosse
tido e havido como brasileiro, falasse o português correntemente e sem nenhum
sotaque, Carlos Galhardo não nasceu no Brasil. O caso dele é o oposto ao do
compositor Alfredo Lepera. O parceiro e amigo de Carlos Gardel, embora tenha
vivido e morrido como argentino, na
verdade era paulistano, embora criado na Argentina. Já o nosso personagem,
filho de um casal italiano, nasceu em Buenos Aires (em 24 de abril de 1913), mas
veio para o Brasil (primeiro para São Paulo e posteriormente para o Rio de
Janeiro) com somente dois meses de vida. Foi criado, portanto, como brasileiro.
Aqui viveu, estudou (fez somente o antigo primário, que era de quatro anos, e
em uma escola pública da então capital federal), trabalhou, conquistou fama e
morreu (em 25 de julho de 1985).
Outro aspecto que me
chamou a atenção em sua biografia é o que se refere à profissão que exerceu,
antes de se tornar cantor e ídolo da “Era do Rádio”. Sua família seria
considerada, hoje, de classe média baixa. O pai, tão logo chegou ao Rio,
assumiu uma casa lotérica que não rendia lá essas coisas. Galhardo teria que
trabalhar, para contribuir no sustento da casa, já que tinha três irmãos (dois
mais velhos, nascidos na Itália e a caçula, que era carioca). Aos oito anos de
idade, perdeu a mãe e passou a viver com um parente, no bairro do Estácio.
Pequeno, ainda, começou
a aprender o ofício de alfaiate, ao mesmo tempo em que cursava o primário. Com
quinze anos de idade, já havia se tornado oficial na profissão, passando por
várias alfaiatarias da cidade. Não gostava, no entanto, do que fazia. Tentou se
ocupar de outras coisas, mas nada deu certo. Trabalhou, por exemplo, por algum
tempo em uma charutaria, mas percebeu que isso era ainda pior do que ser
alfaiate. Voltou, pois, para a profissão original, em que demonstrou inegável
talento.
Sua carreira artística
começou, e posteriormente decolou, por uma série de acasos. Olhem aí as tais
das circunstâncias das quais tanto falo. Numa das alfaiatarias em que Carlos
Galhardo trabalhou, teve como companheiro de trabalho um tal de Salvador
Grimaldi. Esse colega adorava óperas, tinha excelente voz de barítono e não
tardou a convencer o companheiro de bancada a ensaiar com ele alguns duetos.
Durante muito tempo, essa cantoria toda foi feita apenas por prazer, em casa de
amigos e em festas íntimas. Nenhum dos dois sequer cogitava em fazer carreira.
Ambos fizeram. É que o acaso cismou de dar uma providencial mãozinha à dupla
competente.
Tudo aconteceu em uma
festa íntima, na casa de um irmão de Carlos Galhardo. Como sempre faziam, os
parceiros, a certa altura do encontro, foram convidados a cantar. Não se
fizeram de rogados, claro! A dupla cantou com afinação, e não só com ela, mas
com alma e com paixão, uma ária de determinada ópera que não foi mencionada nos
registros biográficos. Não importa. Importa que estavam presentes na referida
festa personalidades do mundo artístico (e que personalidades!), como Francisco
Alves, Lamartine Babo, Mário Reis e Jonjoca. Todos ficaram impressionados com a
voz e com a afinação da dupla, principalmente com Carlos Galhardo.
Perguntaram-lhe se cantava, também, em solo. O jovem alfaiate respondeu que
sim. E fez mais: deu uma demonstração disso.
Escolheu, para
interpretar, um dos grandes sucessos de “Chico Viola” da época, a composição
“Deusa”, de Freire Junior. Arrasou. Sugeriram-lhe que procurasse alguma
emissora de rádio para um teste. Para tanto, foi apresentado ao compositor
Bororó, que o levou à Rádio Educadora do Brasil, onde impressionou de imediato
a direção da emissora. Tanto, que no dia seguinte foi apresentado à gravadora
RCA Víctor. Fez novo teste e obteve nova aprovação. Foi contratado, porém, não
como solista, mas para integrar o coral da gravadora. Mas foi um primeiro
passo.
Não tardou para ser
convidado a gravar seu primeiro disco. Isso ocorreu em 1933 e as músicas
escolhidas foram dois frevos: “Você não gosta de mim”, dos Irmãos Valença e
“Que é que há”, de Nelson Ferreira. A partir daí, Carlos Galhardo acumulou
sucesso sobre sucesso. Por influência de Assis Valente, de quem gravou diversas
composições, chegou a fazer dueto com Carmem Miranda. Ao longo da carreira,
integrou os “casts” de nove emissoras de rádio (Mayrink Veiga, Rádio Clube, Phillips,
Sociedade, Cruzeiro, Cajutio, Tupi, Nacional e Mundial), o que, para a época
foi uma grande façanha.
Sua carreira em disco
foi igualmente assombrosa a ponto de se constituir no segundo cantor que mais
gravou no Brasil, abaixo, somente, do fenômeno dos fenômenos do País, que foi
Francisco Alves. Suas gravações – em 78 rotações, LPs e compactos – por quatro
gravadoras – RCA Víctor, Columbia, Odeon e Continental – ascendem a 570
composições, todas com vendagens excepcionais. Confesso que ele foi um dos meus
cantores prediletos. O ex-alfaiate participou de cinco filmes e, com o advento
da televisão, em vez de ser ofuscado e desaparecer, como tantos outros cantores
que haviam feito sucesso no rádio, Carlos Galhardo manteve-se na “crista da
onda”.
Saiu do Brasil, no
entanto, uma única vez. Foi em 1952, quando se apresentou em Portugal durante
um ano inteiro, entusiasmando platéias na boa terrinha. Recebeu diversos
títulos, que ostentou com orgulho, como os de “Rei do Disco”, “Rei da Valsa” e
de “Cantor que dispensa Adjetivos”. E dispensava mesmo.
Sua última
apresentação, dois anos antes da sua morte, ocorreu em 1983. Foi num espetáculo
produzido por Ricardo Cravo Albin, dedicado ao compositor Antonio Nássara,
realizado na Sala Funarte, no Rio, denominado “Allah-la-ô”. É com prazer e
orgulho, pois, que trago à baila a passagem do centenário de nascimento do
talentoso e (infelizmente) um tanto esquecido “Rei da Valsa”.
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