Tuesday, July 30, 2013

Centenário do Rei da Valsa

Pedro J. Bondaczuk

O rádio, na primeira metade do século XX, consagrou inúmeros artistas populares – cantores, compositores e músicos – tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. O caso norte-americano deixarei de lado, por não ser pertinente ao assunto que vou tratar. É oportuno lembrar, antes de entrar direto no tema a que me propus abordar, que a primeira transmissão radiofônica entre nós se deu exatamente durante os festejos alusivos ao centenário da nossa independência nacional, em 7 de setembro de 1922. Portanto, os artistas anteriores a essa ocasião, não se beneficiaram do alcance e da abrangência desse então revolucionário veículo de comunicação de massa.

Mesmo com o benefício do rádio, foram poucos os cantores de música popular que sobreviveram ao tempo e ao esquecimento e que são lembrados e reverenciados hoje em dia. Destacaria, nesse seleto rol, nomes como Francisco Alves (que, guardadas as devidas proporções, na sua época foi tão popular quanto ainda é hoje Roberto Carlos), Orlando Silva (que por motivos óbvios, ficou conhecido como “o cantor das multidões”), Sílvio Caldas (“o caboclinho querido”), Vicente Celestino, com seu característico vozeirão e... Carlos Galhardo, o “Rei da Valsa”. É sobre este último que irei tecer alguns comentários. E farei isso não por capricho ou por mero acaso. É por um motivo muito especial. Explico: neste mês de abril, completa-se o centenário de nascimento desse ídolo das multidões, notadamente nas décadas de 40, 50 e parte da 60 do século XX.

A biografia desse artista, rigorosamente desconhecido das novas gerações, mas lembrado com saudades pelos contemporâneos – boa parte dos quais o elegeu como o cantor de sua preferência – apresenta uma série de peculiaridades (diria curiosidades) que, mesmo se não fosse famoso, como foi, justificaria ser trazida à baila. Analisemos por partes, para que o texto tenha um mínimo de coerência. O primeiro ponto digno de destaque refere-se ao nome. Carlos Galhardo foi o pseudônimo artístico que adotou. Nos seus documentos, porém, constava: Catello Carlos Guagliardi. Já imaginaram um locutor anunciando-o dessa forma? Ademais, dificilmente os fãs memorizariam seu nome de batismo, mesmo sendo tão original e talvez único. Não conheço nenhum outro Catello, nem entre cantores e nem em outra atividade qualquer. Você conhece, caríssimo leitor?

Bem, não é nada raro (aliás é bastante comum), artistas adotarem nomes artísticos mas, ainda assim, a menção a esse fato não deixa de ser pertinente. O outro aspecto da sua biografia que considero digno de nota, é o da sua nacionalidade. Embora fosse tido e havido como brasileiro, falasse o português correntemente e sem nenhum sotaque, Carlos Galhardo não nasceu no Brasil. O caso dele é o oposto ao do compositor Alfredo Lepera. O parceiro e amigo de Carlos Gardel, embora tenha vivido e  morrido como argentino, na verdade era paulistano, embora criado na Argentina. Já o nosso personagem, filho de um casal italiano, nasceu em Buenos Aires (em 24 de abril de 1913), mas veio para o Brasil (primeiro para São Paulo e posteriormente para o Rio de Janeiro) com somente dois meses de vida. Foi criado, portanto, como brasileiro. Aqui viveu, estudou (fez somente o antigo primário, que era de quatro anos, e em uma escola pública da então capital federal), trabalhou, conquistou fama e morreu (em 25 de julho de 1985).

Outro aspecto que me chamou a atenção em sua biografia é o que se refere à profissão que exerceu, antes de se tornar cantor e ídolo da “Era do Rádio”. Sua família seria considerada, hoje, de classe média baixa. O pai, tão logo chegou ao Rio, assumiu uma casa lotérica que não rendia lá essas coisas. Galhardo teria que trabalhar, para contribuir no sustento da casa, já que tinha três irmãos (dois mais velhos, nascidos na Itália e a caçula, que era carioca). Aos oito anos de idade, perdeu a mãe e passou a viver com um parente, no bairro do Estácio.

Pequeno, ainda, começou a aprender o ofício de alfaiate, ao mesmo tempo em que cursava o primário. Com quinze anos de idade, já havia se tornado oficial na profissão, passando por várias alfaiatarias da cidade. Não gostava, no entanto, do que fazia. Tentou se ocupar de outras coisas, mas nada deu certo. Trabalhou, por exemplo, por algum tempo em uma charutaria, mas percebeu que isso era ainda pior do que ser alfaiate. Voltou, pois, para a profissão original, em que demonstrou inegável talento.

Sua carreira artística começou, e posteriormente decolou, por uma série de acasos. Olhem aí as tais das circunstâncias das quais tanto falo. Numa das alfaiatarias em que Carlos Galhardo trabalhou, teve como companheiro de trabalho um tal de Salvador Grimaldi. Esse colega adorava óperas, tinha excelente voz de barítono e não tardou a convencer o companheiro de bancada a ensaiar com ele alguns duetos. Durante muito tempo, essa cantoria toda foi feita apenas por prazer, em casa de amigos e em festas íntimas. Nenhum dos dois sequer cogitava em fazer carreira. Ambos fizeram. É que o acaso cismou de dar uma providencial mãozinha à dupla competente.

Tudo aconteceu em uma festa íntima, na casa de um irmão de Carlos Galhardo. Como sempre faziam, os parceiros, a certa altura do encontro, foram convidados a cantar. Não se fizeram de rogados, claro! A dupla cantou com afinação, e não só com ela, mas com alma e com paixão, uma ária de determinada ópera que não foi mencionada nos registros biográficos. Não importa. Importa que estavam presentes na referida festa personalidades do mundo artístico (e que personalidades!), como Francisco Alves, Lamartine Babo, Mário Reis e Jonjoca. Todos ficaram impressionados com a voz e com a afinação da dupla, principalmente com Carlos Galhardo. Perguntaram-lhe se cantava, também, em solo. O jovem alfaiate respondeu que sim. E fez mais: deu uma demonstração disso.

Escolheu, para interpretar, um dos grandes sucessos de “Chico Viola” da época, a composição “Deusa”, de Freire Junior. Arrasou. Sugeriram-lhe que procurasse alguma emissora de rádio para um teste. Para tanto, foi apresentado ao compositor Bororó, que o levou à Rádio Educadora do Brasil, onde impressionou de imediato a direção da emissora. Tanto, que no dia seguinte foi apresentado à gravadora RCA Víctor. Fez novo teste e obteve nova aprovação. Foi contratado, porém, não como solista, mas para integrar o coral da gravadora. Mas foi um primeiro passo.

Não tardou para ser convidado a gravar seu primeiro disco. Isso ocorreu em 1933 e as músicas escolhidas foram dois frevos: “Você não gosta de mim”, dos Irmãos Valença e “Que é que há”, de Nelson Ferreira. A partir daí, Carlos Galhardo acumulou sucesso sobre sucesso. Por influência de Assis Valente, de quem gravou diversas composições, chegou a fazer dueto com Carmem Miranda. Ao longo da carreira, integrou os “casts” de nove emissoras de rádio (Mayrink Veiga, Rádio Clube, Phillips, Sociedade, Cruzeiro, Cajutio, Tupi, Nacional e Mundial), o que, para a época foi uma grande façanha.

Sua carreira em disco foi igualmente assombrosa a ponto de se constituir no segundo cantor que mais gravou no Brasil, abaixo, somente, do fenômeno dos fenômenos do País, que foi Francisco Alves. Suas gravações – em 78 rotações, LPs e compactos – por quatro gravadoras – RCA Víctor, Columbia, Odeon e Continental – ascendem a 570 composições, todas com vendagens excepcionais. Confesso que ele foi um dos meus cantores prediletos. O ex-alfaiate participou de cinco filmes e, com o advento da televisão, em vez de ser ofuscado e desaparecer, como tantos outros cantores que haviam feito sucesso no rádio, Carlos Galhardo manteve-se na “crista da onda”.

Saiu do Brasil, no entanto, uma única vez. Foi em 1952, quando se apresentou em Portugal durante um ano inteiro, entusiasmando platéias na boa terrinha. Recebeu diversos títulos, que ostentou com orgulho, como os de “Rei do Disco”, “Rei da Valsa” e de “Cantor que dispensa Adjetivos”. E dispensava mesmo.
Sua última apresentação, dois anos antes da sua morte, ocorreu em 1983. Foi num espetáculo produzido por Ricardo Cravo Albin, dedicado ao compositor Antonio Nássara, realizado na Sala Funarte, no Rio, denominado “Allah-la-ô”. É com prazer e orgulho, pois, que trago à baila a passagem do centenário de nascimento do talentoso e (infelizmente) um tanto esquecido “Rei da Valsa”.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

No comments: