Amizade eterna...
enquanto durou...
Pedro J. Bondaczuk
A amizade entre Sigmund
Freud e Wilhelm Fliess foi de curta duração (apenas cinco anos), mas foi
intensa, de parte a parte. Enquanto durou, houve um clima de irrestrita
confiança recíproca, envolvendo não apenas assuntos profissionais, mas
pessoais. Ambos foram aproximados por um
amigo comum, o célebre médico e professor vienense Josef Breuer. Eram
personalidades completamente distintas, mas que, por razões que apenas os dois
conseguiriam explicar, foram atraídas, uma pela outra. Amizades não se
explicam. Acontecem ou não.
Diferente de Breuer,
Fliess era dois anos mais novo do que Freud (nasceu em 24 de outubro de 1858).
E não era austríaco, mas alemão, natural de Berlim onde nasceu e em cuja
universidade se formou. Em princípio, suas atividades nada tinham a ver com
psiquiatria. Tratava-se de um cirurgião, especializado em otorrinolaringologia.
Não se sabe como veio a se interessar pela psicanálise, mas o fato é que se
interessou e deu, até, contribuição (posto que sumamente restrita) para a nova
disciplina em formação, posto que em nada considerado importante e que tenha
sobrevivido até os dias atuais.
O encontro dos dois
ocorreu em 1887, após Fliess haver assistido, em Viena, a algumas conferências
de Freud e ficado fascinado por suas idéias. Na sequência, foram apresentados,
reitero, um para o outro, por Breuer e não tardou para que se formasse um laço
de profunda amizade entre os dois. É o que comprova a intensa, diria copiosa
correspondência que mantiveram entre 1887 e 1902, na qual trocaram
confidências, deram sugestões mútuas nas respectivas carreiras profissionais e
colaboraram em diversos empreendimentos.
Pode-se dizer, sem
receio de errar, que Fliess foi, para Freud, mais do que amigo. Foi seu
confidente e, principalmente, o grande apoiador moral, notadamente nos momentos
de crise, quando suas idéias revolucionárias foram atacadas por todos os lados,
por psiquiatras e por leigos, ataques esses que às vezes eram tão duros e
cruéis que quase o levaram a desistir de suas pesquisas a propósito da mente e
de seus desarranjos. O amigo, porém, o demoveu (e em várias ocasiões) de agir
dessa forma.
Freud, na minha modesta
avaliação e de competentes críticos que consultei, era bom escritor. Seu estilo
era claro, direto e sumamente atrativo, mesmo na abordagem de temas complexos,
diria técnicos. Era, todavia, um perfeccionista. E tinha sérias dúvidas do seu
talento. Não se contentava apenas com o teor do que expunha, mas esmerava-se
também (ou principalmente) na forma de exposição.
Deduzo isso deste trecho de uma das tantas cartas
que enviou a Fliess, tratando, especificamente, do livro que então estava
escrevendo, “A interpretação de sonhos” e que achava que não estava sendo claro
na exposição da sua tese: “Em alguma parte dentro de mim há um gosto pela
forma, uma apreciação da beleza como uma espécie de perfeição; e as frases
tortuosas de meu livro do sonho, com seu desfile de orações indiretas e
olhadelas oblíquas para as idéias, ofendem profundamente um de meus ideais.
Tampouco estou inteiramente errado em encarar essa falta de forma como um
indício de domínio insuficiente do material. [...] O consolo está na
inevitabilidade: (o livro) simplesmente não saiu melhor do que isso.
Entretanto, lamento ter que sacrificar meu leitor favorito e melhor dentre
todos entregando-lhe provas, pois como se pode gostar de uma coisa que se tenha
que ler nas provas? Infelizmente, não posso prescindir de você como
representante do ‘outro’ – e, mais uma vez, tenho outras sessenta páginas para
você”.
Fliess, por influência de Freud, praticamente abriu
mão da sua especialidade, a otorrinolaringologia, para se dedicar, de corpo e
alma, à nascente disciplina. Contudo, a bem da verdade, sua influência (pelo
menos a direta) para o nascimento da psicanálise foi (e é ainda nos dias de
hoje), considerada ínfima, quase nula, sem importância. É fato que ele foi a
primeira pessoa a chamar a atenção de Freud para a importância dos gracejos,
aquelas piadinhas, na maioria das vezes sem graça, que todos fazemos, uma vez
ou outra, a título de brincadeira. E ele aprofundou os estudos a propósito, escrevendo,
inclusive, um livro tratando disso no qual comprovou tratar-se de material de
grande utilidade para a pesquisa psicanalítica.
Fliess criou, ainda, três teorias, que o tempo se
encarregou de mostrar que não tinham nada de científicas e que morreram no
nascedouro (salvo uma delas). A primeira foi a da chamada “neurose nasal
reflexa”, na qual procurava relacionar a mucosa do nariz com os órgãos
genitais. Claro que ambos não têm qualquer espécie de relação. E ela caiu no
esquecimento. A segunda de suas teorias era, em suma, que a bissexualidade era
inerente a todos os seres humanos e não apenas em alguns. Freud chegou a
incorporá-la às suas idéias, mas logo descartou essa proposição, por ser
inconsistente. E a terceira, que volta e meia vem à baila – no final dos anos
70 do século XX chegou a ser moda aqui no Brasil – é a da existência do
biorritmo, segundo o qual, todos nossos processos vitais se desenvolveriam de
acordo com um ciclo, que duraria 28 dias nas mulheres e 23 nos homens. Embora
muitas pessoas ainda acreditem nisso, ele nunca foi cientificamente comprovado.
E por que essa amizade, que parecia tão sincera,
sólida e indestrutível, chegou ao fim, em 1902, destruída a tal ponto que Freud
rasgou e queimou todas as cartas que recebeu do “ex-amigo” e nunca mais manteve
nenhuma espécie de contato com ele? Por uma acusação muito séria da pessoa em
que tinha tanta confiança e que o decepcionou tão profundamente. Ou seja, pelo
fato de Fliess tê-lo acusado de plagiar várias de suas idéias. Mais uma vez,
portanto, a vaidade entrou em cena e arrasou com uma amizade que parecia imune
à destruição. Ou não?
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