Thursday, July 04, 2013

Crônica do Dia

Amizade eterna... enquanto durou...

Pedro J. Bondaczuk

A amizade entre Sigmund Freud e Wilhelm Fliess foi de curta duração (apenas cinco anos), mas foi intensa, de parte a parte. Enquanto durou, houve um clima de irrestrita confiança recíproca, envolvendo não apenas assuntos profissionais, mas pessoais.  Ambos foram aproximados por um amigo comum, o célebre médico e professor vienense Josef Breuer. Eram personalidades completamente distintas, mas que, por razões que apenas os dois conseguiriam explicar, foram atraídas, uma pela outra. Amizades não se explicam. Acontecem ou não.

Diferente de Breuer, Fliess era dois anos mais novo do que Freud (nasceu em 24 de outubro de 1858). E não era austríaco, mas alemão, natural de Berlim onde nasceu e em cuja universidade se formou. Em princípio, suas atividades nada tinham a ver com psiquiatria. Tratava-se de um cirurgião, especializado em otorrinolaringologia. Não se sabe como veio a se interessar pela psicanálise, mas o fato é que se interessou e deu, até, contribuição (posto que sumamente restrita) para a nova disciplina em formação, posto que em nada considerado importante e que tenha sobrevivido até os dias atuais.

O encontro dos dois ocorreu em 1887, após Fliess haver assistido, em Viena, a algumas conferências de Freud e ficado fascinado por suas idéias. Na sequência, foram apresentados, reitero, um para o outro, por Breuer e não tardou para que se formasse um laço de profunda amizade entre os dois. É o que comprova a intensa, diria copiosa correspondência que mantiveram entre 1887 e 1902, na qual trocaram confidências, deram sugestões mútuas nas respectivas carreiras profissionais e colaboraram em diversos empreendimentos.

Pode-se dizer, sem receio de errar, que Fliess foi, para Freud, mais do que amigo. Foi seu confidente e, principalmente, o grande apoiador moral, notadamente nos momentos de crise, quando suas idéias revolucionárias foram atacadas por todos os lados, por psiquiatras e por leigos, ataques esses que às vezes eram tão duros e cruéis que quase o levaram a desistir de suas pesquisas a propósito da mente e de seus desarranjos. O amigo, porém, o demoveu (e em várias ocasiões) de agir dessa forma.

Freud, na minha modesta avaliação e de competentes críticos que consultei, era bom escritor. Seu estilo era claro, direto e sumamente atrativo, mesmo na abordagem de temas complexos, diria técnicos. Era, todavia, um perfeccionista. E tinha sérias dúvidas do seu talento. Não se contentava apenas com o teor do que expunha, mas esmerava-se também (ou principalmente) na forma de exposição.

Deduzo isso deste trecho de uma das tantas cartas que enviou a Fliess, tratando, especificamente, do livro que então estava escrevendo, “A interpretação de sonhos” e que achava que não estava sendo claro na exposição da sua tese: “Em alguma parte dentro de mim há um gosto pela forma, uma apreciação da beleza como uma espécie de perfeição; e as frases tortuosas de meu livro do sonho, com seu desfile de orações indiretas e olhadelas oblíquas para as idéias, ofendem profundamente um de meus ideais. Tampouco estou inteiramente errado em encarar essa falta de forma como um indício de domínio insuficiente do material. [...] O consolo está na inevitabilidade: (o livro) simplesmente não saiu melhor do que isso. Entretanto, lamento ter que sacrificar meu leitor favorito e melhor dentre todos entregando-lhe provas, pois como se pode gostar de uma coisa que se tenha que ler nas provas? Infelizmente, não posso prescindir de você como representante do ‘outro’ – e, mais uma vez, tenho outras sessenta páginas para você”.

Fliess, por influência de Freud, praticamente abriu mão da sua especialidade, a otorrinolaringologia, para se dedicar, de corpo e alma, à nascente disciplina. Contudo, a bem da verdade, sua influência (pelo menos a direta) para o nascimento da psicanálise foi (e é ainda nos dias de hoje), considerada ínfima, quase nula, sem importância. É fato que ele foi a primeira pessoa a chamar a atenção de Freud para a importância dos gracejos, aquelas piadinhas, na maioria das vezes sem graça, que todos fazemos, uma vez ou outra, a título de brincadeira. E ele aprofundou os estudos a propósito, escrevendo, inclusive, um livro tratando disso no qual comprovou tratar-se de material de grande utilidade para a pesquisa psicanalítica.

Fliess criou, ainda, três teorias, que o tempo se encarregou de mostrar que não tinham nada de científicas e que morreram no nascedouro (salvo uma delas). A primeira foi a da chamada “neurose nasal reflexa”, na qual procurava relacionar a mucosa do nariz com os órgãos genitais. Claro que ambos não têm qualquer espécie de relação. E ela caiu no esquecimento. A segunda de suas teorias era, em suma, que a bissexualidade era inerente a todos os seres humanos e não apenas em alguns. Freud chegou a incorporá-la às suas idéias, mas logo descartou essa proposição, por ser inconsistente. E a terceira, que volta e meia vem à baila – no final dos anos 70 do século XX chegou a ser moda aqui no Brasil – é a da existência do biorritmo, segundo o qual, todos nossos processos vitais se desenvolveriam de acordo com um ciclo, que duraria 28 dias nas mulheres e 23 nos homens. Embora muitas pessoas ainda acreditem nisso, ele nunca foi cientificamente comprovado.

E por que essa amizade, que parecia tão sincera, sólida e indestrutível, chegou ao fim, em 1902, destruída a tal ponto que Freud rasgou e queimou todas as cartas que recebeu do “ex-amigo” e nunca mais manteve nenhuma espécie de contato com ele? Por uma acusação muito séria da pessoa em que tinha tanta confiança e que o decepcionou tão profundamente. Ou seja, pelo fato de Fliess tê-lo acusado de plagiar várias de suas idéias. Mais uma vez, portanto, a vaidade entrou em cena e arrasou com uma amizade que parecia imune à destruição. Ou não?


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