Saturday, July 13, 2013

Guardiã de Freud e da Psicanálise

Pedro J. Bondaczuk

Os grandes homens, os inovadores, os gênios que, com suas idéias, influem no mundo e na sociedade, dando inestimável contribuição para que estes se tornem um pouquinho melhores, como foi o caso de Sigmund Freud, raramente obtêm consenso, em termos de reconhecimento. Acredito que nenhum obtenha, embora admita essa possibilidade, que pode existir, mas que é rara. Se conseguem mobilizar adeptos e fieis discípulos, são alvos, em contrapartida, de hostilidades de toda a sorte, quando não de inimizades explícitas, quase sempre motivadas por inveja ou por má compreensão das suas propostas. Muitos acabam destruídos, se não fisicamente (e vários o são também inclusive nesse aspecto), pelo menos moralmente, com graves prejuízos para a reputação. Possivelmente têm, até, as obras destruídas. Freud não escapou desses ataques, não importa se sutis e disfarçados, ou se ostensivos, feitos às claras.

Teve (e tem) inúmeros discípulos mundo afora, muitos dos quais sequer chegou a conhecer. Mas... contou com muitos, muitíssimos detratores (alguns aprenderam o ofício com ele e posteriormente divergiram do mestre e até tentaram ridicularizá-lo). Seus biógrafos, volta e meia, tentam eleger quem foi seu mais fiel seguidor, o que nunca abriu mão dos princípios transmitidos pelo “Pai da Psicanálise”, ora citando Ernest Jones, ora Edward Glover, ora André Green nessa condição.

Todos esses discípulos merecem louvores pela lealdade e dedicação. Da minha parte, por tudo o que li e pesquisei a respeito da vida desse gênio, porém, mesmo reconhecendo os méritos dos citados e de alguns que nem mesmo citei, se tivesse que eleger uma pessoa que foi fundamental na vida de Freud e, por extensão, para a sobrevivência da linha psicanalítica que criou (quando sob intenso ataque vindo de várias partes), não elegeria nenhum deles. Destacaria, sim, a atuação de uma mulher: Anna Freud. Ela foi, por anos a fio, simultaneamente, a parceira de trabalho, a secretária, a confidente, a psicanalisada, a enfermeira, a protetora, a discípula, a continuadora e... a filha.

Certamente, muitos acharão que pelos laços de sangue essa fidelidade e apego seria a coisa mais natural do mundo e que por isso não merece nem mesmo menção. Não é bem assim. Nem todos os filhos – diria que hoje isso é cada vez mais raro – são tão apegados aos pais, ou defendem suas idéias e realizações ou preservam suas obras e seu prestígio contra tudo e contra todos. Ainda mais se algum dia sentiram-se rejeitados por quem dedicam tão inquestionável afeto e irrestrita fidelidade. Mas foi o caso de Anna.

Quando ela nasceu (em 3 de dezembro de 1895), Freud já tinha 39 anos de idade e cinco filhos. Ela foi, portanto, a caçula do casal. Tanto ele, quanto sua mulher, Martha, não esconderam o fato de que essa nova boca para alimentar, em uma família já tão numerosa e assoberbada por despesas e dificuldades econômicas, não era bem vinda. Consideraram-na um grande estorvo. Dessa forma, a menina cresceu sendo considerada o “patinho feio” da casa (não no aspecto físico, óbvio, pois até que era bonitinha, mas em termos de expectativas). Tanto isso é verdade que Freud, após seu nascimento, e por não poder utilizar contraceptivos, optou pelo celibato, ou seja, por se manter casto pelo resto da vida.

Anna tinha algumas desvantagens em relação aos irmãos. Por ser mulher, por exemplo, não estava nos planos do pai ser educada para alguma das carreiras mais promissoras e rentáveis de então, o que era voltado exclusivamente para os homens da família. Ademais, mesmo não sendo feia, não tinha nem de longe a beleza esfuziante da irmã Sophie Halberstadt e muito menos a elegância de Mathilde Hollitscher. Sentia-se, portanto, em situação de ostensiva inferioridade em comparação com os irmãos. Pensam que isso a abalou? De jeito nenhum! Ali estava uma garota de fibra que se revelaria, anos mais tarde, mulher talentosa, virtuosa e... vencedora.

Anna era uma criança alegre, inteligente e observadora. Mas não era dessas menininhas quietinhas, discretas e obedientes. Eram dela, por exemplo, as maiores traquinagens, dessas de arrepiar os cabelos, que fazia, porém, com tanta graça que, não raro, em vez de ser castigada pelos pais, despertava-lhes risos, posto que quase nunca na sua presença. E isso desde pequenina. Não tardou para despertar a simpatia do pai, mesmo que esse, assoberbado pelo trabalho, não lha manifestasse abertamente. Contudo, nas célebres cartas que escreveu ao seu então confidente, Wilhelm Fliess, Freud observou, com indisfarçável ternura: “Anna está completamente bonita por sua desobediência”. Essa correspondência data de 1899, quando a menina tinha, apenas, quatro anos de idade!

O ciúme foi a característica marcante de sua personalidade na adolescência. Não da mãe, como seria de se esperar, nem dos irmãos ou de qualquer outra pessoa. Vivia invejando, sim, mas a doutrina que a privava da companhia do pai, que tanto adorava e cuja aceitação tanto buscava, pois não sabia que, secretamente, este já a elegera, até subconscientemente, como a preferida. Na idade madura, juntou-se, tão logo este se formou, ao seleto círculo de discípulos de Freud. Buscou absorver cada ensinamento dele e queria porque queria seguir a mesma profissão do seu ídolo: a Medicina. Frustrou-se, todavia.

Naquela época, havia imensas restrições ao ingresso de mulheres nas universidades. As raríssimas que conseguiam, eram encaradas com desconfiança e hostilidade, tanto pelos colegas, quanto pelos professores. Anna não foi aceita na Faculdade de Medicina. Outra pessoa qualquer, nas suas condições, desistiria e se conformaria com um casamento, geralmente por interesse e arranjado pelos pais. Mas ela não era pessoa de desistir dos sonhos. Decidiu lecionar, empregando-se numa escola primária, até para ajudar nas despesas da casa. E atuou nessa atividade por seis anos, no período em que durou a Primeira Guerra Mundial e um pouco mais, ou seja, de 1914 a 1920.

Essa atividade lhe foi sumamente útil mais tarde, quando já reputada psicanalista. Ela se especializou, justamente, no atendimento de crianças, e preferencialmente carentes, oriundas dos bairros mais miseráveis de Londres, exatamente o tipo de público que atendeu em Viena, como professora de meninos e meninas pobres. Anna terminou sua educação básica em 1912, na capital austríaca. Nesse período, teve uma experiência marcante e constrangedora.

Em 1914, antes de começar a lecionar, resolveu viajar para a Inglaterra, com o objetivo de melhorar seu inglês. Foi quando começou a guerra. De imediato, foi considerada pelas autoridades inglesas como “estrangeira inimiga”. Afinal, seu país de origem, o Império Austro-Húngaro, havia declarado guerra à Inglaterra. Não teve jeito: foi deportada para Viena. Curiosamente, 25 anos depois, em 1939, viveria experiência um tanto parecida. Ou “quase”. A diferença é que, quando começou a Segunda Guerra Mundial, Anna não foi mais considerada “estrangeira inimiga”. E obteve asilo, para si e para o pai, então gravemente enfermo, que viria a morrer meses depois de haver sido trasladado para a Inglaterra (para se livrar da implacável perseguição nazista) e exatos 22 dias após o início do sangrento conflito bélico.

Tratarei, oportunamente, e com mais vagar, da história de Anna Freud. Por que? Por um sem número de razões. As principais são: sua fascinante personalidade, seu apego irrestrito ao pai, sua fidelidade às suas idéias e seu próprio trabalho psicanalítico com as crianças que a levou a divergir profundamente de outra pioneira da Psicanálise, no caso, Madeleine Klein. Creio que esses são motivos mais do que suficientes para me deter com mais atenção na figura dessa mulher excepcional em todos os sentidos, que morreu em 9 de outubro de 1982, pouco antes de completar 87 anos, legando à posteridade preciosa obra, além de meritório exemplo.


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