Guardiã de Freud e da
Psicanálise
Pedro
J. Bondaczuk
Os grandes homens, os
inovadores, os gênios que, com suas idéias, influem no mundo e na sociedade,
dando inestimável contribuição para que estes se tornem um pouquinho melhores,
como foi o caso de Sigmund Freud, raramente obtêm consenso, em termos de reconhecimento.
Acredito que nenhum obtenha, embora admita essa possibilidade, que pode
existir, mas que é rara. Se conseguem mobilizar adeptos e fieis discípulos, são
alvos, em contrapartida, de hostilidades de toda a sorte, quando não de
inimizades explícitas, quase sempre motivadas por inveja ou por má compreensão
das suas propostas. Muitos acabam destruídos, se não fisicamente (e vários o
são também inclusive nesse aspecto), pelo menos moralmente, com graves
prejuízos para a reputação. Possivelmente têm, até, as obras destruídas. Freud
não escapou desses ataques, não importa se sutis e disfarçados, ou se
ostensivos, feitos às claras.
Teve (e tem) inúmeros
discípulos mundo afora, muitos dos quais sequer chegou a conhecer. Mas...
contou com muitos, muitíssimos detratores (alguns aprenderam o ofício com ele e
posteriormente divergiram do mestre e até tentaram ridicularizá-lo). Seus
biógrafos, volta e meia, tentam eleger quem foi seu mais fiel seguidor, o que
nunca abriu mão dos princípios transmitidos pelo “Pai da Psicanálise”, ora
citando Ernest Jones, ora Edward Glover, ora André Green nessa condição.
Todos esses discípulos
merecem louvores pela lealdade e dedicação. Da minha parte, por tudo o que li e
pesquisei a respeito da vida desse gênio, porém, mesmo reconhecendo os méritos
dos citados e de alguns que nem mesmo citei, se tivesse que eleger uma pessoa
que foi fundamental na vida de Freud e, por extensão, para a sobrevivência da
linha psicanalítica que criou (quando sob intenso ataque vindo de várias partes),
não elegeria nenhum deles. Destacaria, sim, a atuação de uma mulher: Anna
Freud. Ela foi, por anos a fio, simultaneamente, a parceira de trabalho, a
secretária, a confidente, a psicanalisada, a enfermeira, a protetora, a
discípula, a continuadora e... a filha.
Certamente, muitos
acharão que pelos laços de sangue essa fidelidade e apego seria a coisa mais
natural do mundo e que por isso não merece nem mesmo menção. Não é bem assim.
Nem todos os filhos – diria que hoje isso é cada vez mais raro – são tão apegados
aos pais, ou defendem suas idéias e realizações ou preservam suas obras e seu
prestígio contra tudo e contra todos. Ainda mais se algum dia sentiram-se
rejeitados por quem dedicam tão inquestionável afeto e irrestrita fidelidade.
Mas foi o caso de Anna.
Quando ela nasceu (em 3
de dezembro de 1895), Freud já tinha 39 anos de idade e cinco filhos. Ela foi,
portanto, a caçula do casal. Tanto ele, quanto sua mulher, Martha, não
esconderam o fato de que essa nova boca para alimentar, em uma família já tão numerosa
e assoberbada por despesas e dificuldades econômicas, não era bem vinda.
Consideraram-na um grande estorvo. Dessa forma, a menina cresceu sendo
considerada o “patinho feio” da casa (não no aspecto físico, óbvio, pois até
que era bonitinha, mas em termos de expectativas). Tanto isso é verdade que
Freud, após seu nascimento, e por não poder utilizar contraceptivos, optou pelo
celibato, ou seja, por se manter casto pelo resto da vida.
Anna tinha algumas
desvantagens em relação aos irmãos. Por ser mulher, por exemplo, não estava nos
planos do pai ser educada para alguma das carreiras mais promissoras e
rentáveis de então, o que era voltado exclusivamente para os homens da família.
Ademais, mesmo não sendo feia, não tinha nem de longe a beleza esfuziante da
irmã Sophie Halberstadt e muito menos a elegância de Mathilde Hollitscher.
Sentia-se, portanto, em situação de ostensiva inferioridade em comparação com
os irmãos. Pensam que isso a abalou? De jeito nenhum! Ali estava uma garota de
fibra que se revelaria, anos mais tarde, mulher talentosa, virtuosa e...
vencedora.
Anna era uma criança
alegre, inteligente e observadora. Mas não era dessas menininhas quietinhas,
discretas e obedientes. Eram dela, por exemplo, as maiores traquinagens, dessas
de arrepiar os cabelos, que fazia, porém, com tanta graça que, não raro, em vez
de ser castigada pelos pais, despertava-lhes risos, posto que quase nunca na
sua presença. E isso desde pequenina. Não tardou para despertar a simpatia do
pai, mesmo que esse, assoberbado pelo trabalho, não lha manifestasse
abertamente. Contudo, nas célebres cartas que escreveu ao seu então confidente,
Wilhelm Fliess, Freud observou, com indisfarçável ternura: “Anna está
completamente bonita por sua desobediência”. Essa correspondência data de 1899,
quando a menina tinha, apenas, quatro anos de idade!
O ciúme foi a
característica marcante de sua personalidade na adolescência. Não da mãe, como
seria de se esperar, nem dos irmãos ou de qualquer outra pessoa. Vivia
invejando, sim, mas a doutrina que a privava da companhia do pai, que tanto
adorava e cuja aceitação tanto buscava, pois não sabia que, secretamente, este
já a elegera, até subconscientemente, como a preferida. Na idade madura,
juntou-se, tão logo este se formou, ao seleto círculo de discípulos de Freud.
Buscou absorver cada ensinamento dele e queria porque queria seguir a mesma
profissão do seu ídolo: a Medicina. Frustrou-se, todavia.
Naquela época, havia
imensas restrições ao ingresso de mulheres nas universidades. As raríssimas que
conseguiam, eram encaradas com desconfiança e hostilidade, tanto pelos colegas,
quanto pelos professores. Anna não foi aceita na Faculdade de Medicina. Outra
pessoa qualquer, nas suas condições, desistiria e se conformaria com um
casamento, geralmente por interesse e arranjado pelos pais. Mas ela não era
pessoa de desistir dos sonhos. Decidiu lecionar, empregando-se numa escola
primária, até para ajudar nas despesas da casa. E atuou nessa atividade por
seis anos, no período em que durou a Primeira Guerra Mundial e um pouco mais,
ou seja, de 1914 a 1920.
Essa atividade lhe foi
sumamente útil mais tarde, quando já reputada psicanalista. Ela se
especializou, justamente, no atendimento de crianças, e preferencialmente
carentes, oriundas dos bairros mais miseráveis de Londres, exatamente o tipo de
público que atendeu em Viena, como professora de meninos e meninas pobres. Anna
terminou sua educação básica em 1912, na capital austríaca. Nesse período, teve
uma experiência marcante e constrangedora.
Em 1914, antes de começar
a lecionar, resolveu viajar para a Inglaterra, com o objetivo de melhorar seu
inglês. Foi quando começou a guerra. De imediato, foi considerada pelas
autoridades inglesas como “estrangeira inimiga”. Afinal, seu país de origem, o
Império Austro-Húngaro, havia declarado guerra à Inglaterra. Não teve jeito:
foi deportada para Viena. Curiosamente, 25 anos depois, em 1939, viveria
experiência um tanto parecida. Ou “quase”. A diferença é que, quando começou a
Segunda Guerra Mundial, Anna não foi mais considerada “estrangeira inimiga”. E
obteve asilo, para si e para o pai, então gravemente enfermo, que viria a
morrer meses depois de haver sido trasladado para a Inglaterra (para se livrar
da implacável perseguição nazista) e exatos 22 dias após o início do sangrento
conflito bélico.
Tratarei,
oportunamente, e com mais vagar, da história de Anna Freud. Por que? Por um sem
número de razões. As principais são: sua fascinante personalidade, seu apego
irrestrito ao pai, sua fidelidade às suas idéias e seu próprio trabalho
psicanalítico com as crianças que a levou a divergir profundamente de outra
pioneira da Psicanálise, no caso, Madeleine Klein. Creio que esses são motivos
mais do que suficientes para me deter com mais atenção na figura dessa mulher
excepcional em todos os sentidos, que morreu em 9 de outubro de 1982, pouco
antes de completar 87 anos, legando à posteridade preciosa obra, além de
meritório exemplo.
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