Pedro J. Bondaczuk
O poeta transforma, com a magia do seu talento, até o que é horroroso em belo. Já os escritores de outros gêneros não têm essa faculdade. Talvez até tenham a capacidade de fazer isso, mas a necessidade de fazerem seus enredos, cenários e personagens verossímeis, não lhes permite essa metamorfose, essa mágica transformação do hediondo em belo, posto que de trágica beleza.
Um poema – e já escrevi isso em inúmeros textos, mas não me canso de repetir e, por isso, faço questão de reiterar – é um instantâneo da alma do autor. Eterniza, em palavras, as emoções sentidas em um momento particular, como amor, saudade, tristeza, solidão etc. E, por que não, inveja, ódio, desprezo e outros sentimentos nada nobres, mas onipresentes na alma humana. A diferença está na forma com que o poeta os traduz. Está no fato de, com o frágil instrumento da palavra, metamorfosear tudo isso e tornar, como num passe de mágica, o horrendo em belo, ou quase isso.
É o que Mário Quintana deixa entrever nas linhas de “O poema”, publicado em seu livro “Poesias”, da Editora Globo, em 1962 e que diz:
“Um poema como um gole d’água bebida no escuro.
Como um pobre animal palpitante ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza”.
O poema colhe os mais imaculados lírios nos pântanos apodrecidos das paixões. E fere, e é ferido, “de mortal beleza”. Esse é o seu encanto. Essa é a sua magia. E Mário Quintana faz isso como ninguém. O que mais gosto em sua poesia é a espontaneidade, a naturalidade e, sobretudo, a simplicidade do seu verso. Ele consegue, aparentemente sem nenhum esforço, tocar, simultaneamente, o intelecto e a emoção, o cérebro e o coração, mostrar, ao mesmo tempo e no mesmo poema, a grandeza e a pequenez humanas. Sinto-me cúmplice do que escreve, ou seja, seu parceiro de composição. Aproprio-me de seus versos como se os houvesse escrito.
Não me canso de ler Quintana. Nunca me cansei. Nas minhas raras horas de ócio, delicio-me com seus poemas, reflito, “devoro” cada palavra com gula e sofreguidão e todas elas sabem-me a ambrosia dos deuses, a néctar, à delícia das delícias. Tenho, em minha caótica biblioteca, todos os livros que publicou e muito mais. Conto com uma infinidade de poemas publicados em jornais. E mais ainda: conto com centenas deles enviados por e-mail por amigos que salvo, criteriosamente, em uma pasta aberta exclusivamente para esse fim na memória do meu computador. Sei, de cor e salteado, um montão deles, que recito mentalmente quando pressionado, ou aflito, ou triste e vai por aí afora.
É verdade que Quintana não é o único dos meus poetas preferidos. Estes ascendem, sem nenhum exagero, à casa dos milhares. Mas, por razões que não saberia explicar, seus poemas ocupam o topo das minhas preferências. Sua linguagem coloquial, provavelmente, tem muito (se não tudo) a ver com essa predileção. É um poeta que não só admite suas fraquezas (que são basicamente as nossas, mas que relutamos em declarar, pelo menos de público, por excesso de escrúpulo, ou de vaidade), mas brinca com elas. Fá-las parecer coisas naturalíssimas, com o tom ligeiramente irônico que assume.
Quintana não abusa de metáforas surrealistas, como a maior parte dos poetas. Seus versos são límpidos e diretos e até quem não é familiarizado com poesia os entende, ou melhor, os “sente”. Eles caem diretamente na alma e agem como bálsamos. Podem ser lidos em quaisquer circunstâncias – tanto quando nos sentimos felizes e eufóricos, quanto quando estamos tristes, acabrunhados ou mesmo desesperados – e fazem o mesmíssimo efeito. Ou seja, nos consolam, dissipam nossas angústias e preocupações, nos fazem ver a realidade por um prisma diferente, mais amável, natural e equilibrado. Exagero? Façam vocês mesmos o teste. Leiam, a esmo, seus poemas, qualquer um deles.
Deliciem-se (como eu não canso de fazer), por exemplo, com estes versos:
A verdadeira arte de viajar
“A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!”
Pois é, vocês sabiam que um simples passeio, despreocupado e a esmo, pode se transformar em uma viagem? E mais, que tem lá a sua arte? E não é assim? Quintana faz essa constatação com tamanha simplicidade, com tanta lógica, sem pedantismo ou vã filosofia, que nos convence de imediato. Outra verdade – aparentemente politicamente incorreta – é a que expressa neste poema:
Dos nossos males
“A nós bastem nossos próprios ais,
que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
os nossos calos doem muito mais...”
Querem outro poema, tido também como politicamente incorreto – de acordo com os tantos intrometidos que assumem, sem que ninguém lhes peça, o antipático papel de árbitros do comportamento alheio, Quintana faria, nestes versos, apologia ao tabagismo. Tolice, claro – que é belíssimo e verdadeiro? Lá vai:
Que bom ficar assim
“Que bom ficar assim, horas inteiras,
fumando...e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
a baladilha ingênua das goteiras.
E vai à Névoa, a bruxa silenciosa,
transformando a Cidade, mais e mais,
nessa Londres longínqua, misteriosa,
das poéticas novelas policiais...
Que bom, depois, sair por essas ruas,
onde os lampiões, com sua luz febrenta,
são sóis enfermos, a fingir de luas...
Sair assim (tudo esquecer talvez)
e ir andando, pela névoa lenta,
com a displicência de um fantasma inglês...”
Os homens, com seus sonhos, ilusões e fantasias passam. Reis e mendigos, senhores e vassalos, santos e bandidos, superpotências, países, Estados, cidades, túmulos e monumentos passam. Só o tempo, e os ciclos imutáveis da natureza, permanecem, embora se renovando a cada instante, a cada hora, minuto e segundo. É o que Mário Quintana constata, com simplicidade e sensibilidade, como quem não quer nada, neste poema intitulado “O caminho”:
“Passa o Rei com seu cortejo.
Passa o Deus no seu andor.
E milênios depois, neste caminho, apenas
ainda sopra o vento nas macieiras em flor...”.
Temos que ser humildes para admitir nossa transitoriedade (de que raramente nos damos conta) e sábios, para aceitar esse ímpeto de renovação que há no tempo (que poucos têm a grandeza de aceitar). E Quintana nos transmite tudo isso com poucas palavras, mas com uma lógica irretorquível. E com beleza. Como não gostar de um cara assim?!!!
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