Pedro J. Bondaczuk
O poeta Mário Quintana é daqueles raros cuja poesia é impossível de ser lida com indiferença. Muitos poemas, de tantos autores mundo afora (e de alguns até famosos e reverenciados) passam batidos à primeira leitura, dessas apressadas que às vezes fazemos em momentos de baixa concentração. Requerem que se os leia com atenção redobrada, duas, três ou mais vezes. Mesmo assim, ficamos sem compreender o que, exatamente, o poeta quis dizer.
Está bem! É certo que o importante na poesia é senti-la e não exatamente compreendê-la. Poemas cifrados, todavia, parecendo que foram escritos em remota língua morta de dois ou três milênios atrás, que ninguém mais consegue decifrar, a não ser quem os compôs (e talvez nem eles) não nos despertam emoção alguma. Não os retemos na memória e muito menos no coração.
Com Mário Quintana isso não acontece. Ele prima pela clareza. Sua linguagem é coloquial, familiar, tête-a-tête e rigorosamente compreensível. Suas metáforas, sumamente criativas e originais, são, no entanto, inteligíveis a qualquer pessoa e não somente a meia dúzia de iniciados. Seu grande segredo é este: a simplicidade, o que, em literatura, é expediente muito mais complicado do que possa parecer aos desavisados. Reitero o que escrevi muitas vezes e que muitos me contestaram, entendendo que eu exagerava: “Senhores, é muito difícil, dificílimo, ser simples!!!”
Outra característica de Quintana que me encanta é o bom-humor que permeia sua poesia, mesmo quando trata de temas, digamos, “árduos”, ou dramáticos, ou tristes ou pavorosos, sei lá. A leitura dos seus poemas passa-nos a impressão de que a vida é simples, e sempre bela, e que nós é que a complicamos com atitudes ilógicas e com visão permanentemente sombria e negativa. Desconfio que ele é que estava certo.
Nunca li nenhum poema dele em que, ao cabo da leitura, não retivesse seu conteúdo por completo, mesmo quando a leitura tenha sido feita com pressa, sem a devida concentração, ou seja, quando distraído, ou cansado ou apenas desatento. Confesso que cheguei a decorar vários deles (os mais curtos, porém), lendo-os somente uma vez. E não atribuo isso a nenhum eventual “prodígio” da minha memória, que nem é tão prodigiosa assim. Prova disso é que esse fenômeno nunca se repetiu com a leitura de outros poetas. Suas mensagens tocam-me fundamente e se aninham bem no centro do mecanismo das emoções.
Quintana escreveu pouco sobre a Primavera, pelo menos especificamente. Essa estação do ano, porém, permeia toda sua obra, mediante o recurso da sugestão. Ela está sempre presente. Por exemplo, no próprio título de um de seus livros mais conhecidos, “Sapato florido”, uma catarata de sensibilidade, ternura, emoção e bom-gosto. Leiam-no e vejam se exagero. Se exagero há, em minha avaliação, este é o de não conseguir transmitir com exatidão a preciosidade que essa obra é (ademais, como todos os livros desse poeta bonachão e positivo).
Entre seus poemas, com os quais me deliciei – li, na verdade reli, por volta de duas centenas ou mais nos últimos dias – encontrei este, alusivo à Primavera:
Canção de Primavera
“Um azul do céu mais alto
Do vento a canção mais pura
Me acordou, num sobressalto
Como a outra criatura…
Só conheci meus sapatos
Me esperando, amigos fiéis
Tão afastado me achava
Dos meus antigos papéis!
Dormi cheio de cuidados
Como um barco soçobrando
Por entre uns sonhos pesados
Que nem morcego voejando...
Quem foi que ao rezar por mim
Mudou o rumo da vela
Para que despertasse assim
Como dentro de uma tela?
Um azul do céu mais alto
Do vento a canção mais pura
E agora… este sobressalto...
Esta nova criatura!”.
Chamo a atenção para um detalhe, que pode ter escapado do leitor desatento. No poema acima, a não ser no título, Quintana não menciona uma única vez a Primavera. Mas escreve sobre ela. Quem lê, sabe de que assunto se trata. E isso apenas confirma minha constatação de que ele foi (e é, pois apesar de já falecido, sua obra permanece mais viva do que nunca, para o deleite dos amantes da poesia) “mestre da sugestão”.
Escrever sobre Mário Quintana e sobre a sua marcante obra não é nada fácil. Não que ambos sejam complicados, complexos, difíceis de serem entendidos. Longe disso. Aliás, o motivo é exatamente o oposto. Ou seja, é a extrema simplicidade de ambos. Para fazê-lo, teremos que nos transportar para sua mente (se é que essa façanha seja possível), pensarmos como pensou e, num esforço sobreumano, sermos, igualmente, simples. Como, porém, nos livrarmos dessa renitente obsessão,dessa mania, desse vício de complicar todas as coisas e, notadamente, todos os sentimentos?
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