Pedro J. Bondaczuk
O escritor, notadamente o que faz carreira na literatura e que, portanto, não se limita a escrever, ou a publicar, um único e solitário livro, é um tremendo obcecado. E suas obsessões são muitas, talvez infinitas (ou quase). É obcecado, por exemplo, pela perfeição (que secretamente admite que nunca conseguirá), pela comunicação, pela interação com os leitores e vai por aí afora. Claro que, indagado a respeito, sempre irá negar. “Obcecado, eu?!”, certamente exclamará, em tom de indagação, mas já deixando implícita enfática negativa quando instado a se manifestar a respeito. Muitas vezes, todavia, nem ele sabe que tem tantas obsessões. A principal delas, na maioria dos casos, é por determinado tema ou por um punhado deles que se fazem sempre presentes ao longo da sua obra.
Mas há algum problema em se ser obcecado? Isso desvirtua ou compromete uma obra literária? Não, principalmente se o escritor for talentoso, criativo e souber lidar com suas obsessões, sem que se torne óbvio, repetitivo e, por isso, cansativo. Pelo contrário, se tiver essas características que citei, fará delas o seu charme, uma espécie de logotipo, de marca registrada da sua temática.
A maioria dos escritores com quem conversei a propósito nega que seja obcecada seja pelo que for. Acredito na sinceridade (de alguns, não de todos) e não vejo razão para a negativa de outros, dos que sei que nutrem obsessões e que sabem disso, mas que teimam em negar, como se se tratasse de grave e incorrigível defeito, uma espécie de desvio mental, ou moral, ou de caráter, ou comportamental. Óbvio que não é nada disso.
Querem um exemplo de um obcecado, que sempre admitiu isso e mais, que fez dessa característica o cerne de sua obra, magnífica e monumental por qualquer ângulo que se a analise? Cito o mais conhecido de todos: Jorge Luís Borges. Já escrevi muito a esse propósito, mas escrever sobre esse genial homem de letras para mim é sempre inefável prazer, do qual jamais me furto. Provavelmente, é uma das minhas obsessões literárias (e tenho uma infinidade delas que meu leitor habitual certamente não apenas percebeu, como identificou). Entre minhas principais, porém, três se destacam: relógios, espelhos e labirintos. E as duas primeiras eu já tinha antes de conhecer a obra de Borges. Apenas a terceira é fruto da sua influência em minha recorrente temática.
O escritor argentino confessou, em um de seus tantos ensaios: “Na verdade, tudo isso corresponde a obsessões de minha infância. Os espelhos, os labirintos, os tigres, as armas brancas. E creio que isso é tudo, não tenho outros temas. Sucede que eu não escolho os temas. Os temas é que me procuram e, às vezes, me encontram. Mas são fascínios da infância. Recordo que havia no meu quarto de menino uma cômoda com três espelhos. Eu me via triplicado nesses espelhos e tinha medo de me ver diferente em algum deles”.
O motivo de eu ser obcecado por estes mesmos objetos, que refletem nossa imagem, não tem nada a ver com traumas e nem com infância. Tem a ver, sim, com vaidade. Com o ato de conferir nossa estampa para saber como é ou como está, no afã de sempre melhorá-la. Todos temos um Narciso dentro de nós. “Apaixonamo-nos” pela nossa imagem, aquela que os espelhos refletem. Propomo-nos a melhorá-la, aperfeiçoá-la, torná-la o mais próximo possível do nosso ideal de beleza. Desde que não levemos essa auto-apreciação ao extremo (e tudo o que é exagerado é condenável, ou quase tudo), não vejo mal algum nisso. A vaidade, na dose certa, é virtude. O problema é determinar qual é a dosagem correta, adequada, normal e sadia.
Borges justifica (ou tenta justificar), mais adiante, a razão de fazer desses objetos e desse animal específicos o cerne de sua temática. Escreve: “Não procurei temas. Os temas me procuraram. Creio que sou o melhor meio possível, isto é: não pensei em falar de labirintos, falar de armas brancas, falar de atores, falar de espelhos, não. Esses temas insistem em que eu os escreva. São como obsessões, porém obsessões amáveis, carinhosas, e, já que voltam nos meus sonhos, na minha imaginação, voltam àquilo que se veio a chamar de ‘literatura’... Ou seja, creio que o poeta é, melhor dizendo, passivo: recebe e agradece algo e, a seguir, procura informá-lo em palavras que não sejam demasiado indignas desse dom desconhecido que ele recebe continuamente ou, às vezes, de tempo em tempo”. Sua justificativa convenceu-me. A você não, precioso leitor?
Borges empresta aos labirintos duas acepções simbólicas diferentes. A primeira, não me lembro se também já adotei em meus textos. Possivelmente4, não. Já a segunda é a que adoto frequentemente e que considero a mais adequada. A primeira ele define assim: “O labirinto é o símbolo mais evidente do estar perdido”. Já para a segunda, o significado que ele dá (e que, reitero, eu também) é esta: “Eu creio que os labirintos são símbolos evidentes de perplexidade. Perplexidade ante o fato de ser habitante do corpo humano. Perplexidade ante o fato de viver no tempo e no espaço; perplexidade ante meu próprio destino e, sobretudo, nos últimos anos; perplexidade ante o êxito que meus ídolos conseguiram”. Pois é, também fico perplexo com tudo isso. Por conseguinte, percorro os mesmos labirintos que Borges percorreu, posto que não descrevo esse “perplexo” percurso com a mesma magistralidade e genialidade que ele. Pudera!
Obcecado ou não, o fato é que concordo com Borges quando ele constata (e concordo não apenas com esta constatação, claro): “O mundo inteiro é um jogo de símbolos e todas as coisas significam outra coisa”. E não é? Como, pois, deixar de cultivar obsessões se elas simbolizam tantas coisas? Neste caso sou réu confesso. Sou obcecado, sim: pela beleza, pela transcendência, pela poesia, pelo amor, pela solidariedade, pela literatura, por Borges. Sou um feixe de obsessões. Mas, a maior delas é a que tenho pela vida, a despeito de suas surpresas (nem sempre agradáveis), sofrimentos, dores, desencantos, velhice e tantas e tantas outras armadilhas, que fazem dela perpétua e (para mim) fascinante aventura.
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