Friday, September 28, 2012

Despertar da natureza

Pedro J. Bondaczuk

Os poetas costumam comparar as fases da vida às quatro estações do ano. Até aí, eu não disse nada de novo. Isso é mais do que sabido. Talvez você, caríssimo leitor, em algum momento de devaneio (ou de inspiração, como queira), ao compor um poema ou mesmo ao redigir uma crônica, já tenha feito essa comparação, e mais de uma vez. Compara-se, por exemplo, a primavera à infância “cheia de encantos”, mesmo que esta não tenha sido tão encantadora assim e, pelo contrário, haja sido difícil e sofrida, como a de milhões, provavelmente bilhões de pessoas mundo afora. Nem todos (diria poucos) têm esse privilégio. A memória, porém, não retém esses sofrimentos, dificuldades e traumas. Não, pelo menos, explicitamente. Quando os registra, retêm-nos apenas no inconsciente ou no subconsciente (ou em ambos). No plano da consciência, guarda, apenas, o lado bom dessa fase, em que, praticamente, não temos nenhuma responsabilidade ou preocupação.

Já o verão é relacionado à adolescência, repleta de energia; o outono, à maturidade do bom-senso e o inverno, à velhice da solidão e frustrações. Essas comparações foram feitas tantas vezes, por tantas pessoas, que se transformaram em uma espécie de estereótipo, quando não de mero clichê. Discordo, todavia, dela. Prefiro outra, mais positiva e próxima da real. Afinal, as estações do ano repetem-se a cada 365 dias, indiferentes ao fato de estarmos vivos ou não, ao contrário dos estágios da vida.

Relaciono, por exemplo, a primavera à alegria; o verão, ao entusiasmo; o outono; ao bom-senso e o inverno, à experiência que se consegue, apenas, com vivência. Temos essas fases não apenas uma vez na vida, mas inúmeras. Como, aliás, ocorre com as estações do ano, que nada mais são do que conseqüências da posição da Terra em relação ao Sol, em seu giro anual em torno da estrela que nos ilumina, aquece e proporciona condições para que haja vida.

Fôssemos, portanto, escrever sobre as estações do ano racionalmente, sobre o que de fato são, sem recorrermos a símbolos ou metáforas, teríamos pouco a dizer. Quando muito, nosso texto preencheria duas ou três páginas ou, quem sabe, um capítulo mais extenso e só. Tudo o mais que se escrevesse não passaria de repetição, ou de reiteração, como alguns preferem. A Arte, porém, (e não somente a Literatura), multiplica, virtualmente, ao infinito um tema tão banal, limitado e restrito. Para tanto, vale-se da imaginação, que não tem limites e da criatividade, que igualmente tende a ser ilimitada. E disso resultam obras tão belas e expressivas, que nos tocam, sobretudo, a sensibilidade e nos despertam toda uma gama de emoções.

Se todas as estações do ano são importantes para o ciclo de vida na Terra, qual a razão dos artistas preferirem a primavera? Entendo que essa preferência origina-se do hemisfério norte, onde o inverno é muito mais rigoroso, sombrio e duro do que nesse nosso país tropical, com temperaturas não raro oscilando, em alguns lugares, entre 30 e até 50 graus centígrados abaixo de zero e com dias e mais dias de nevascas severas, que afetam todas as atividades. As árvores perdem suas folhas, as flores murcham, os animais buscam refúgio e proteção contra a inclemência do clima e a vida parece parar (evidentemente, não pára, mas reduz bastante seu ritmo). Daí as metáforas comparando o inverno à velhice, fase em que, salvo exceções, reduzimos nosso ritmo ao mínimo, em decorrência do natural desgaste do organismo.

Nesse contexto, a primavera simboliza uma espécie de renascimento, de despertar da natureza após penosa e providencial hibernação. Poucos dias após seu início, os campos, até então crestados e revestidos de cor amarronzada, reverdescem. As raízes brotam, as folhas ressurgem nas árvores, as flores tornam a aparecer, os pássaros despertam e encantam com sua algaravia. A natureza toda se veste de luzes, de sons e de cores, num espetáculo belíssimo que só não sensibiliza os empedernidos e renitentes pessimistas. Há muitos deles por aí que se privam desses encantos gratuitos por razões que só eles conhecem. Desconfio que sejam masoquistas que gostem de sofrer.

Florbela Espanca, entre tantos e tantos poetas, tempo e mundo afora, deixou-nos versos belíssimos a respeito da primavera. Por que a menciono especificamente? Porque tratou-se de mulher sofrida, posto que apaixonada. Porque soube transformar seus sofrimentos em versos pungentes, mas belos. Porque enfrentou circunstâncias de imensa dramaticidade, a tal ponto, que em determinado momento, não conseguiu resistir. Cedeu. Findou por dar cabo da vida, cometendo suicídio. Foi vencida, é verdade, pelo infortúnio, com o que não concordo, embora compreenda. Mas, antes de ceder, fez de suas desventuras belas obras de arte. Sou apaixonado por sua poesia.

Entre seus tantos versos, há um que diz: “Há uma primavera em cada vida: é preciso cantá-la, assim, florida...” Concordo. Apenas discordo dessa limitação: “uma”. Ela não condiz com o que ocorre com a estação que lhe serviu de modelo e de inspiração para a elaboração dessa bela metáfora, pois se repete, desde quando existe o Planeta, com implacável regularidade, todos os anos. Sendo assim, entendo que teremos tantas “primaveras” quantas quisermos (isso, claro, no sentido figurado que a poetisa lhe emprestou), desde que estejamos predispostos a isso. Queiram ou não, o maior desafio que temos é o de fazermos de nossa vida (tão curta, tão efêmera, comparável a um piscar de olhos e muitas vezes tão dramática e sofrida), memorável obra de arte. É possível? Não sei! Mas tento fazer isso com a minha, enquanto ela não se extingue.

Para fazer justiça a Florbela Espanca, partilho com vocês este belíssimo soneto, tendo por mote a primavera, que pincei de um de seus tantos e preciosos livros. Espero que vocês o apreciem tanto quanto o apreciei.

Ruínas

“Se é sempre Outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras.
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino de Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais altos do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... deixa-os tombar...”

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