Pedro J. Bondaczuk
O Centro Nuclear Federal da Rússia – nome atual do histórico complexo de pesquisas Arzamas-16 – onde foram desenvolvidas as primeiras bombas atômicas e de hidrogênio da extinta União Soviética, conserva sua importância (possivelmente até ampliada), com várias experiências científicas sendo realizadas ali. Uma delas é a construção do mais potente laser do mundo, em pleno andamento, previsto para ser testado ainda neste ano. Só essa última informação já é suficiente para se avaliar sua relevância para os estudos no campo da física avançada, notadamente no que se refere à energia. Fica, todavia, a dúvida, principalmente ao leigo (portanto à maioria) se as pesquisas são para fins pacíficos, como se insinua, ou, como antes, são exclusivamente militares.
Arzamas-16 tem, obviamente, história. E muita. Dos vários livros que pesquisei sobre o tema destaco três (que recomendo ao leitor que pretenda se aprofundar no assunto), dois dos quais, creio, jamais lançados no Brasil: “Stalin e a bomba: a União Soviética e a bomba, 1946-1956”, de David Holloway, e “Sol escuro: construção da bomba de hidrogênio”, de Richard Rhodes. O terceiro, este sim com versão em português, e que tive a oportunidade de citar em texto anterior, é “Um Stalin desconhecido”, do famoso dissidente soviético Roy Medvedev.
A despeito dessa relevância histórica e da importância atual desse complexo para a Rússia, foi justamente em Arzamas-16 que se desenvolveu a mais extraordinária colaboração nuclear já tentada entre o Leste e o Oeste. Esse magnífico e ultra-secreto centro de pesquisas acolheu, no início da última década do século XX, cientistas norte-americanos do Laboratório Nacional de Los Álamos, onde foi desenvolvida e testada a primeira bomba atômica da história, em 19 de julho de 1945 – usada, posteriormente, contra Hiroshima, pouco menos de três semanas após a primeira e bem sucedida prova, ou seja, em 6 de agosto desse ano.
Os contratos de cooperação técnico-científica entre estes dois centros foram assinados em outubro de 1992. Não posso garantir se ainda estão em andamento. Presumo que não. Mas até o início de 2000, Rússia e Estados Unidos cooperavam nesse sensível campo, em vez de competirem ferrenhamente, como havia ocorrido no tenso e perigoso período da Guerra Fria. Só não se pode afirmar com segurança se isso se tratou de um avanço ou de um retrocesso. Afinal, estamos tratando de armas nucleares, e não de pesquisas médicas, por exemplo, necessárias para a erradicação de várias doenças ainda incuráveis. É dinheiro demais investido em algo que não trará qualquer benefício à humanidade. Pelo contrário: até aumenta o risco de sua extinção.
Nesse período em que o acordo de cooperação vigorou, realizaram-se cerca de 20 experiências conjuntas, com a utilização do que cada lado tinha de melhor. Ou seja, da parte russa, a excelência dos artefatos explosivos, que eram (não posso garantir se ainda sejam) superiores aos dos Estados Unidos, conforme garantiam especialistas do setor. Da parte norte-americana, os melhores monitores, para evitar eventuais falhas ou fortuitos desastres durante as explosões de testes.
O Laboratório Nacional de Los Álamos fornecia, na ocasião, em torno de 10% do orçamento de Arzamas. Era um montante que girava ao redor de US$ 3 milhões a US$ 4 milhões anuais. Parte do trabalho dos cientistas norte-americanos referia-se à segurança de reatores e limpeza. Mas a cooperação não se restringiu a atividades tão inocentes. O cerne do programa estava no campo da física fundamental. Ou seja, a base indispensável para o desenvolvimento de armas termonucleares.
Houve quem acreditasse que os norte-americanos teriam repassado tecnologia ao antigo inimigo. Para estes, Stephen Younger, diretor de assuntos internacionais de Los Álamos respondeu na ocasião: "O trabalho que eles (os russos) fazem aqui está cinco a dez anos à frente de qualquer coisa feita no Ocidente". Será que ainda está? Ou a diferença foi tirada? Difícil de dizer, até porque as informações referentes a tão sensível atividade são escassas, quase nulas e, quando divulgadas, são sumamente vagas e genéricas.
Pelos cálculos ocidentais, talvez três mil pessoas na Rússia guardam na memória o que laboratórios estrangeiros denominam de "informações críticas sobre projetos de armas nucleares". Metade desse pessoal trabalha, ainda, em Arzamas-16. Os outros 50% estão na cidade das ciências chamada de Chelyabinsk-70. Portanto, esse complexo secretíssimo tem suma importância estratégica para os russos, como destaquei. Concentra 9.500 cientistas de primeira linha e engenheiros qualificados, que se eventualmente viessem a se bandear para o Ocidente ou para países que aspiram a possuir armas nucleares próprias – casos do Irã ou da Coréia do Norte – receberiam seu peso em ouro.
Um dos programas chaves de pesquisa desenvolvidos, conjuntamente, em Arzamas, pelos cientistas locais e seus colegas norte-americanos do Laboratório Nacional dos EUA de Los Álamos foi o que os físicos chamam de "energia de pulsação". Os russos, frise-se, ainda ocupam a vanguarda mundial nesse campo, com base, inclusive, em cálculos e projetos elaborados pelo gênio de Andrei Sakharov, nos anos 60 e parte de 70.
O jornalista John Barry, da revista "Newsweek", explicou, após histórica e inusitada visita a Arzamas-16, no início de 1996, no que consistia tal pesquisa: "A idéia é usar a energia química de uma potente explosão convencional para criar uma gigantesca pulsação de energia eletromagnética, que por sua vez seria usada para desencadear uma reação de fusão nuclear. A fusão geraria assombrosos volumes de energia para fins pacíficos". Os esboços desse processo, feitos por Sakharov, ainda estão em Arzamas, conforme destaquei em texto anterior.
Um dos tesouros desse complexo de pesquisa russo é o que se chama ali de "Prédio 860". Trata-se de uma estrutura do tamanho de um hangar de grande porte. É o acelerador LIU-30 de feixes de partículas. Suas dimensões são gigantescas, como também é a energia capaz de gerar. Tem a altura de um prédio de dois andares e comprimento de pelo menos 50 metros. Trata-se de um dos mais sofisticados equipamentos do gênero em todo o mundo. Desenvolve 40 milhões de eletron-volts de energia, o que representa o dobro do único acelerador similar norte-americano, que está no Novo México.
Compete, (ou pelo menos competia) por outro lado, aos pesquisadores de Arzamas-16 solucionar o maior problema da Rússia contemporânea: como proteger seu estoque de materiais físseis, o maior do mundo, para que não venha a cair em mãos indevidas, por meio de contrabando. Com a ajuda de Los Álamos, foi testado um sistema totalmente automatizado de controle. Ele utiliza-se de códigos de barras e "passaporte de neutrons" emitidos pelos cilindros de materiais radioativos.
O sistema em questão registra na tela do computador toda a movimentação de materiais nucleares no laboratório, prevenindo, assim, possíveis desvios. Pelo visto, ele vem, funcionando, já que não se teve notícias de nenhum contrabando de materiais físseis russos. Mas... nunca se sabe. Especialistas garantem que o processo é dos mais avançados e eficazes mesmo quando comparado com similares norte-americanos. Pouca coisa, porém, foi revelada pelos dois lados sobre os resultados das pesquisas conjuntas, o que é compreensível pela natureza do assunto.
Quanto ao laser em Arzamas-16, a informação sobre a sua construção foi dada pelo jornal “Gazeta Russa”, em sua edição de 3 de maio de 2012. O diretor científico desse centro de pesquisas, Radi Ilkaev, explicou que o novo equipamento – que, reitero, será o mais potente do mundo no seu gênero – terá dupla finalidade: “Por um lado será usado para o estudo das propriedades físicas do plasma denso, importante para a construção de armas termonucleares. Por outro, a fusão termonuclear a laser pode nos ajudar a obter a energia do futuro”.
O gigantesco e poderoso equipamento terá o comprimento de 360 metros e mais de 30 metros de altura, atingindo a incrível potência de 2,8 mega joules. Está orçado em 45 bilhões de rublos, o equivalente a cerca de 2,8 bilhões de reais. Estas informações nos induzem à dedução lógica de que, ao contrário do que se supõe, a corrida armamentista nuclear está longe de ter acabado, com cooperação ou não entre os antigos (antigos?) antagonistas. Ambos ainda buscam a “bomba definitiva”, a que confira supremacia inquestionável a quem a tiver. Daí emerge, natural e espontaneamente, a pergunta óbvia: para quê tanto esforço e tanta despesa se o emprego dessa arma, tão cobiçada, não importa por qual das partes, significará a destruição do Planeta, sem que haja, portanto, vencedor numa eventual guerra nuclear?
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