Pedro J. Bondaczuk
A História acabou? Não há mais conflitos ideológicos e existe um consenso, posto que na prática ainda não manifestado, de que a democracia liberal é o melhor sistema que existe, por proporcionar oportunidades iguais, de ascensão social e, por conseqüência, econômica, a todos? Para o filósofo e cientista social norte-americano, Francis Fukuyama, a resposta é “sim!!!”. Não é, todavia, o que se observa por toda a parte, mundo afora. Conflitos de toda a sorte não apenas subsistem, como tendem a se acentuar. A humanidade está longe, muito distante, da grata utopia de um sistema ideal, que seja aceito (sem reservas) por todos e que elimine todos os focos de tensão.
A bem da verdade, Fukuyama não afirmou que a História já tenha acabado, com a vitória incontestável do liberalismo sobre todas as demais ideologias. Acentuou que se trata de um processo, que estaria em pleno andamento. Manifestou, sim, que ao cabo dele, o sistema a que se apega com tamanho fervor triunfará, sem nenhuma dúvida ou possibilidade de erro. O tempo correto do verbo, portanto, não deveria estar no passado. Não deveria ser “a História acabou”. Deveria estar no futuro: ela “acabará”. Ainda assim...
Fukuyama abriu, seu célebre e polêmico artigo de 1989, na revista National Interest, da seguinte forma: “Algo extremamente fundamental ocorreu na história mundial: o triunfo do Ocidente, o triunfo da idéia ocidental”. A seguir, ponderou: “Talvez não estejamos apenas presenciando o fim da Guerra Fria, ou a conclusão de um período específico da história do pós-guerra, mas o término da História em si mesma, ou seja, a síntese final da evolução ideológica da humanidade e o fenômeno da universalização da democracia liberal ocidental, como a força última de governo para a humanidade”.
Mais adiante, no citado artigo, admitiu que o processo não estava concluído. Escreveu: “Claro que isso não significa que deixarão de ocorrer acontecimentos importantes que continuarão a preencher o sumário anual do ‘Foreign Affairs’ sobre relações internacionais, porque a vitória do liberalismo ocorreu, basicamente, no terreno das idéias ou da consciência e prossegue, ainda incompleta, no mundo real ou material. Mas existem razões poderosas para acreditar que este será o ideal que governará o mundo material no futuro”. Para ele, portanto – é o que se depreende do texto – a História “ainda não havia acabado”, mas estava a caminho de acabar.
A propósito desse tema e, principalmente, do livro “O fim da História e o último homem”, de Francis Fukuyama (Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1992), cito o excelente ensaio da ilustre historiadora Hanen Sarkis Kanaan – licenciada em história pela Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina (UNESC) e especialista em Políticas Públicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) – que muito me tem ajudado, com seus esclarecimentos, nesta série de reflexões.
É essa renomada intelectual que esclarece melhor a tese do filósofo norte-americano, a propósito da apregoada vitória da democracia liberal. Escreve, em determinado trecho do seu lúcido e esclarecedor ensaio: “O ‘fim da História’, último estágio do avanço econômico, não significaria o fim da história social ou fim dos acontecimentos naturais como vida ou morte, mas sim, uma sociedade tecnológica que pudesse suprir todas as necessidades humanas. Atingindo esse estágio, ocorreria o fim do desenvolvimento dos princípios e das instituições básicas, pois todas as questões realmente importantes estariam resolvidas”.
A rigor, a tese de Fukuyama – a despeito de todas as ressalvas que ele fez – não obteve consenso sequer na esfera liberal. Foram inúmeros os cientistas políticos e economistas dessa vertente que rebateram as idéias do filósofo norte-americano. Não citarei nenhum, até para não tornar estas reflexões bastante extensas e, por isso, cansativas.
Houve, na oportunidade da publicação do artigo, quem afirmasse que sua aceitação do fim da Guerra Fria, como “favas contadas”, era “exageradamente otimista”. No caso, não era. Apenas algumas semanas depois da publicação do polêmico texto de Fukuyama, esta foi oficialmente declarada extinta, pelos então presidentes dos Estados Unidos, George Bush (o pai) e da União Soviética, Mikhail Gorbachev, na reunião de cúpula realizada a bordo de um navio, ancorado ao largo da ilha de Malta, no Mar Mediterrâneo, em 31 de outubro de 1989.
Outros expoentes liberais apontavam, como principal obstáculo à vitória do liberalismo, a ponto de torná-lo consenso no mundo, as estruturas sociais na maior parte dos países, quer do Ocidente, quer do Oriente. Acusaram Fukuyama de tratar os defeitos da sociedade, inclusive os da norte-americana, com leviandade. Apontaram esses defeitos como sendo, primordialmente, a pobreza e o racismo. A revista “Time” chegou a publicar um artigo devastador sobre a tese, cujo título já deixava bastante claro seu ácido teor: “O início do absurdo”. Irving Kristol, por seu turno, observou, num texto que publicou na revista “The National Interest” (a mesma que publicou pela primeira vez a polêmica tese do filósofo norte-americano: “Não acredito numa só palavra do artigo... mas a análise (de Fukuyama) é tão brilhante que não é fácil rejeitá-la ou refutá-la”.
O cientista político francês, Pierre Hasner, achava que o teórico norte-americano não levava na devida conta o Terceiro Mundo em sua tese. “Fukuyama reconhece a persistência da guerra e da pobreza fora do Ocidente. Tende, todavia, a subestimá-las como irrelevantes por não estarem relacionadas com as grandes nações desenvolvidas que estão saindo da História. Mas podem, estas últimas, não ser afetadas? Ou, ao invés, não possuímos provas crescentes de aumento da intolerância provocada pelo choque cultural e o superpovoamento do Planeta?”.
Hasner arremata, da seguinte forma, sua contestação à tese de Fukuyama: “E estes conflitos não estarão ligados a tensões internas; no nível econômico, em tempos de crise; no nível político, se a superpopulação e a competição pelo espaço vital tornam mais viável a presença de um Estado forte, ou possivelmente autoritário; e, acima de tudo, dentro do espírito dos indivíduos, onde se pode reafirmar a sede de absolutos e de comunidade, de violência e de hierarquia?” Portanto, reitero o que escrevi em textos anteriores sobre a tese de Fukuyama: “a História, mesmo no sentido dado por esse especialista político, não acabou. Pelo contrário, continua, com suas tensões, injustiças e contradições. Até quando? Até sempre?”
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