Pedro J. Bondaczuk
O golpe de Estado contra o presidente do Sudâo, Jaafar Numeiry, ocorrido ontem, em Cartum, era há muito esperado pelos observadores que acompanham o desenrolar dos acontecimentos naquele país. Há 16 anos no poder, esse ambicioso general conheceu incríveis reviravoltas em sua carreira.
Sobreviveu a inúmeras quarteladas, abriu e fechou o regime em várias oportunidades, ao sabor das conveniências e firmou e rompeu alianças, ora com a Líbia, ora com o Egito, de conformidade com a evolução dos acontecimentos no Norte da África, a seu favor ou contra ele.
O exercício do poder, todavia, quando não escudado numa política firme, racional e coerente e que, sobretudo, além de não contar com o indispensável respaldo popular, não apresente resultados palpáveis, pelo menos a médio prazo, desgastas profundamente. Ainda mais se quem o detém o obteve – como Jaafar Numeiry – através de expedientes de força.
Líder máximo e indiscutível de 22 milhões de sudaneses (costumava mandar fuzilar quem ousasse se opor aos seus desígnios), esse general foi responsável, em 25 de maio de 1969, pelo fracasso do Conselho Supremo, eleito em substituição à Assembléia Nacional Constituinte e presidido por Ismail al_Azari, de dotar o Sudão de uma Constituição.
Num ato de força, Numeiry assumiu, naquela oportunidade, o comando nacional, impondo, a partir de então, seus princípios extremados, caracterizados pelo fanatismo religioso, através de um golpe militar de Estado.
Naquela época, seus ideais estavam bem próximos dos apregoados pelos coronéis líbios, que no mesmo ano haviam deposto a monarquia naquela ex-colônia italiana do Norte da África e se proposto a impor aos vizinhos uma política pró-soviética e de aberta confrontação com Israel e com seus aliados.
Muammar Khadafy, até mesmo, prestou indispensável ajuda a Numeiry, em 19 de julho de 1971, quando este foi deposto por comunistas, fazendo com que, apenas três dias depois, mercê da sua ação, o caudilho sudanês reentrasse triunfante (e mais poderoso ainda) em Cartum e mandasse executar todos os adversários (e até os que eram somente suspeitos).
Seis anos mais tarde, a situação seria muito diferente. O presidente do Sudão, após sufocar outro dos inúmeros complôs contra seu regime, no qual viu fortes implicações líbias, rompeu, espetacularmente, com Tripoli, aproximando-se do Egito, de Anwar El-Sadat, e dos Estados Unidos.
A partir daí, comeram as dores de cabeça de Numeiry com o belicoso e rico vizinho do Noroeste, do qual já fora aliado, que a despeito de ter vinte vezes menos habitantes do que o Sudão, sempre se constituiu num incômodo fantasma para o seu país, dividido por um longo e preocupante estado de pré-guerra civil entre o Norte e o Sul e atolado até o pescoço em dívidas.
Qualquer revés na luta contra os rebeldes sulistas (e foram muitos), o presidente sudanês passou a atribuir à interferência líbia. Sempre que descobria algum complô contra seu governo (ou mesmo quando apenas cismava que havia algum), o culpado era, invariavelmente, o regime do coronel Khadafy.
Tão absorvido Numeiry ficou nas tramas (que afirmava existirem) para o apearem do poder, que se esqueceu do essencial: de governar. A economia nacional entrou em parafuso. A dívida externa, por causa da oscilação da taxa internacional de juros, ficou literalmente impagável. E, para complicar, veio a seca nas outrora férteis planícies do Sul do Sudão, levando fome e desespero para dois terços da população, que há tempos já nutria idéias separatistas.
O golpe foi apenas questão de tempo, embora adiado em um mês da data originalmente estipulada pelos golpistas. O próprio Jaafar Numeiry confessou, no dia 2 passado, em Washington, que em março deste ano frustrou uma conspiração tramada por muçulmanos radicais para o depor. Parece, contudo, que não levou muito a sério esse complô. Dias após tê-lo descoberto, resolveu empreender a atual viagem particular aos EUA, criando, dessa forma, um vácuo no poder. E reza um princípio elementar em política: o poder jamais admite vazios.
O resultado não poderia ser diferente do que foi. Estimulados pelos líbios (que sempre viram no Sudão importante e potencial aliado para hostilizar o Egito, ao qual os radicais árabes não perdoam até hoje o fato de haver se aproximado de Israel), elementos ambiciosos sudaneses não perderam a preciosa chance. Puseram fim ao reinado de 16 anos de Jaafar Numeiry. Criaram, com isso, a expectativa de sérias dificuldades para os EUA na área.
Para o povo do Sudão, esse período passará, certamente, para a história como dos mais tensos e medíocres. E, mais uma vez, cumpre-se a lógica do poder. Aquele que o usurpa pela força, raramente o deixa por outro meio que não o da violência. É só consultar os milhares de antecedentes históricos para se constatar isso.
(Artigo publicado na página 19, Internacional, do Correio Popular, em 7 de abril de 1985).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment