Vontade
e consciência
Pedro J. Bondaczuk
O convívio entre as pessoas, dadas as contradições
do nosso tempo entre a avançada tecnologia e o retrocesso do humanismo,
descamba cada vez mais para o absurdo. A vida que se vê por aí, no plano
material, naquele que se convencionou chamar de "real", é marcada por
dores, medos, egoísmo, desamor, injustiças e violência. E também por sujeição,
exploração, cinismo, corrupção e impiedade. Vez por outra tomamos conhecimento
de um ato nobre, de um gesto desprendido, de uma manifestação genuína de amor.
Não daquele possessivo, que tudo quer e pouco ou nada dá em troca. Mas do
magnânimo, do desinteressado, do espontâneo, que ainda resiste e existe (embora
a maioria duvide), mas que é extremamente raro.
Porém essa não é uma regra, senão exceção. No
mais... O noticiário da imprensa é um desfile de desgraças, corrupção, sangue e
aberrações. Ao contrário do que pensam os alienados, não é a mídia que cria (ou
pelo menos amplia) tamanha insanidade. Ela não passa de espelho do
comportamento humano. Só reflete a feiúra e a loucura do suposto "homo
sapiens".
É preciso que o homem crie um outro mundo – o da
razão, o da arte, o do ideal, o da sensibilidade – para que esta existência se torne pelo menos
suportável. Não é a vida que é ruim, mas a maneira como somos forçados a viver.
Quando nascemos, isto que está aí já existia e já havia um relativamente
extenso retrospecto de insânia, que se denomina de "História",
instalado. Deixaremos que as gerações futuras encontrem o mesmo cenário, ou
quiçá pior? É o questionamento que o intelectual, o homem racional e
idealista deve fazer a cada instante da sua existência. Se deixarmos, seremos
cúmplices dos tiranos, dos corruptos e dos assassinos que levaram a humanidade
ao atual impasse.
Sem ilusão de que as coisas podem e vão melhorar, o
indivíduo é capaz de enlouquecer, tamanha sua impotência para se proteger e tão
grandes são os perigos que o cercam a cada passo do seu convívio, desde que põe
os pés fora de casa até seu regresso (e mesmo no recesso do seu lar). Mas esta
precisa ter uma dosagem certa. Não pode se limitar a mera fantasia. Tem que ser
verossímil. Precisa poder ser transformada em potencial, em meta, em alvo, em
objetivo factível a se alcançar.
Estas idéias, embora eu concorde com elas (e nem
posso deixar de concordar diante das evidências palpáveis da sua exatidão), não
são minhas. São do teatrólogo, poeta, ensaísta político e ex-presidente da
República Checa, Vaclav Havel. Li, recentemente, uma resenha de seu pensamento
e senti-me enriquecido por conhecer alguém que conseguiu colocar em palavras
aquilo que eu apenas intuía, embora sentisse na própria carne as contradições
que ele aponta.
Como sobre o absurdo da existência tal como a vivemos,
onde a busca do poder é o objetivo maior de alguns, o acúmulo de bens materiais
é de outros e a luta pura e simples pela sobrevivência física é o que resta à
maioria das pessoas. Por que, se todos os homens nascem iguais e o fim é
idêntico – “com terra por cima e na horizontal", como diz a letra de um
samba de Billy Blanco?
Outro aspecto marcante da sua obra é o que destaca a
importância do intelectual como fator de transformação social, como o que
desperta e cristaliza os anseios de liberdade do indivíduo e dos grupos mesmo
que não organizados ou mobilizados e lhes mostra o caminho adequado para
empreender essa luta milenar, essencial, básica, fundamento da paz. Essa
influência é que torna tais pessoas "especiais". Mas também as
transforma em contestadoras, revolucionárias, subversivas,
"perigosas" para os tiranos e os que lucram com o sistema e que por
isso agem no sentido da sua preservação.
Quem
exerce esse poder de influenciar afronta enorme responsabilidade. Não pode ser
um cego guiando outros. Precisa ter clarividência para entender que as idéias
são mais poderosas do que as pessoas. Deve armar a estratégia adequada para que
a verdade prevaleça. E necessita ter, sobretudo, sinceridade de propósito, para
não transformar a vitória sobre a tirania em outra pior. Só faz cabeças quem já
tenha a própria feita. O intelectual, dependendo do seu engajamento e do seu
poder de persuasão, tanto pode se transformar em fator de libertação quanto
conduzir multidões ao caos da violência, do preconceito e da destruição.
É escusado apresentar exemplos históricos, de
lideranças equivocadas, que conduziram povos à desgraça, tão recentes e
abundantes eles são. No sentido inverso, os casos também abundam, embora em
número menor. O verdadeiro líder, o que dissemina humanismo e razão e cuja vida
se torna um marco, um referencial, um guia no caminho da liberdade para os
homens do seu tempo e das gerações vindouras, trabalha, basicamente, com dois
conceitos abstratos importantes: vontade e consciência. Cada um deles deve ser
aplicado no momento e na dosagem adequados.
Através do primeiro, são deflagradas as ações,
embora estas possam ser positivas ou negativas. Mediante o segundo, são feitas
as correções de rumo, evitadas as distorções, reparadas as injustiças e
dominados os demônios interiores que tentam o indivíduo a subjugar e explorar
seus semelhantes. O escritor Humberto de Campos sintetizou os dois,
determinando o seu âmbito e abrangência, ao escrever: "Sê senhor da tua
vontade e escravo da tua consciência". Existe síntese melhor?
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