Perestroika
tem função didática
Pedro J. Bondaczuk
O
presidente Mikhail Gorbachev afirmou e reiterou inúmeras vezes que a
perestroika não é, em absoluto, o funeral do socialismo, no que diz respeito
aos ideais de promoção de justiça social. O que ele está abrindo mão é do
dogmatismo retrógrado, que cristaliza equívocos em nome de um pretenso ideal
igualitário. É o totalitarismo. É aquela idéia estúpida de que o homem deve
servir ao Estado, quando a proposição correta é exatamente inversa.
Ele
próprio assinalou, no livro "Perestroika, Novas Idéias para o Meu País e o
Mundo": "A vida leva-nos a rejeitar estereótipos tradicionais, idéias
obsoletas e ilusões". Ou seja, Gorbachev está deixando de lado os clichês,
slogans e palavras de ordem despidos de conteúdo. Está sepultando dogmas. Está
despertando a população de suas ilusões para a dura realidade dos fatos.
Esta,
todavia, não tem sido agradável. O país envia foguetes a outros planetas e não
sabe fabricar uma geladeira que preste. Daí o descontentamento, represado por
sete décadas, estar rompendo os diques do autoritarismo e extravazando para as
ruas, as fábricas, os jornais e toda a vida pública.
A
atual geração de soviéticos foi condicionada a entregar suas preocupações e
aflições nas mãos de um "líder", de um "grande papai"
(Stalin era chamado dessa maneira até a sua morte) que o partido mistificava e
as pessoas não ficavam sequer sabendo se era de fato humano ou mero símbolo.
Os
restos mortais de Lenin são preservados até hoje e venerados como um santo. A
socióloga soviética, Larissa Lissjutkina, constatou a esse propósito:
"Numa sociedade totalitária, a personalidade é imediatamente destruída,
mas continuamos vivendo biologicamente. A vida do déspota nada tem de humano e
por este motivo anulou, de maneira exemplar, as fronteiras entre o ser e o não
ser. No romance '1984', de Orwell, nem mesmo os membros mais elevados do
'partido interno' sabem se o Grande Irmão está morto ou se ele continua
vivendo, se existe um ser humano ou apenas um símbolo".
Com
Gorbachev, nada disso acontece. A população sabe que ele é "humano".
Intui que possui vulnerabilidade, como cada cidadão. Que tem família,
interesses pessoais, problemas, dúvidas, fraquezas e depressões. Portanto, é um
homem de carne e osso, como qualquer um. Por isso, não satisfaz o estereótipo
do líder todo-poderoso que foi passado ao povo através de anos de culto à
personalidade dos que comandavam seus destinos do Cremlin, como se fossem
marionetes. Daí, o presidente soviético ser tão vulnerável.
Hoje,
tudo o que de ruim acontece na URSS é atribuído à "incompetência" de
Gorbachev. Ele é o alvo visível, palpável, presente de todos os
descontentamentos. Os soviéticos conquistaram liberdade, mas não sabem o que
fazer com ela. Afinal, jamais foram livres. Querem uma vida melhor, mas não se
dispõem a sacrifícios espontâneos. Nunca foram chamados a participar da
condução de seus próprios destinos. Sempre foram fantoches nas mãos dos czares
e secretários-gerais do Partido Comunista.
O
editorialista de "O Estado de São Paulo", Noênio Spínola, no artigo
intitulado "Z e a Dança dos Fantasmas", publicado em 13 de fevereiro
de 1990, expressou como poucos a característica básica dos liderados de
Gorbachev, ao constatar: "Dostoievskianos como são os russos, divididos entre
o crime e o castigo, entre o bem e o mal, eles não conhecem muitas zonas de
sombra".
Ou
seja, para eles não há outros números entre o oito e o oitenta. Suas vidas
sempre oscilaram entre extremos ditados de cima para baixo. Daí a perestroika
ter a necessidade de ser implantada no tempo certo, nem adiantada e nem
atrasada. Antes de tudo, ela tem sido um processo didático para todos os
soviéticos.
(Artigo
publicado na página 13, Internacional, do Correio Popular, em 19 de abril de
1991).
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