Na calada da noite
Pedro J.
Bondaczuk
A noite me fascina, mas também me
assusta. Fui dessas crianças que sempre tiveram medo do escuro. Só conseguia
dormir com uma luz acesa no quarto, proveniente de um abajur no criado-mudo
para dissipar, pelo menos em parte, a escuridão, e que só era desligado quando
os primeiros clarões do novo dia penetravam pelas frestas da veneziana. A
razão? Jamais consegui saber.
No início da adolescência,
passava noites e mais noites em claro, compondo versos – que nem sei onde foram
parar – de forma frenética, diria até delirante, ouvindo rádio e sonhando,
sonhando acordado em me tornar um grande escritor. Mais tarde, gostava de
perambular, sem destino, pelas ruas (naquele tempo não havia a violência de
hoje), observando as pessoas, parando nos barzinhos que encontrava pelo caminho
para beber alguma coisa e para dois dedos de prosa. E só voltava para casa
quando o dia começava a raiar.
Depois...veio o trabalho. Por
anos e anos a noite foi o período em que exerci a minha atividade de
jornalista, mais especificamente, de editor. Houve ocasiões (que duraram
décadas), em que começava minha jornada às 15 horas e só a encerrava às quatro
da madrugada do dia seguinte. Nunca me saíram da memória os tipos que conheci
nas ruas de São Paulo, nessas madrugadas vadias do passado.
Um tal de A. R. Smith (não tenho
a mínima idéia do que essas iniciais significam), escreveu, em certa ocasião –
encontrei essa citação numa revista e decidi anotar: "Não há solidão mais
terrível nem mais impressionante que aquela que existe no coração de uma enorme
e fria cidade". Pude (reitero) comprovar isso na prática. Não há mesmo.
Lembro-me que, em 1961, quando
trabalhava como locutor de rádio (e eu tinha só 19 anos, vejam só!), numa dada
noite, ao voltar de Santo André (eu trabalhava na Rádio ABC dessa cidade), rumo
a Santo Amaro (morava numa pensão desse distrito de São Paulo), perdi o último
ônibus para casa.
Tendo que esperar até às seis
horas da manhã, quando a linha voltaria a circular (eram duas da madrugada),
decidi preencher, de alguma forma, esse tempo. Caminhei, vagarosamente, sem
destino definido, pelas ruas então desertas do coração da metrópole (o atual
Centro Velho paulistano). Parei em uma banca e comprei umas cinco ou seis
revistas (lembro-me que foram a "X-9", "Gazeta Esportiva Ilustrada",
"Revista do Rádio", "Equipe" e mais duas especializadas na
publicação de letras de músicas) e o jornal "O Estado de São Paulo".
Passei por um barzinho, tomei um
café e um "rabo de galo" (pinga com cinzano), comi um ovo empanado e
comprei um maço de cigarros Luiz XV (sem filtro, claro, pois na época apenas o
Minister tinha filtro e era muito caro e fraco para o meu gosto).
Andando, sem nenhuma pressa,
observava o rosto das pessoas com as quais cruzava, que trabalhavam nesse
horário tão ingrato e estavam entrando ou saindo de serviço. Percebia. em cada
uma delas (ou julgava perceber) uma espécie de resignação, de solidão, de mudo
e desesperado apelo à cordialidade, à companhia e ao diálogo. Eu também me
sentia assim. Nem me passava pela cabeça, na ocasião, a mínima possibilidade de
assalto. Os tempos, nessa época, eram menos violentos, conforme já destaquei.
Cansado de caminhar, sentei-me
num banco, sob um abrigo de ônibus que fica ao lado da escadaria que dá acesso
à Galeria Prestes Maia, no Viaduto do Chá, em pleno Vale do
Anhangabaú. Lá, para que o tempo passasse mais depressa, fiquei a rabiscar o
esboço de um poema em um caderno, que sempre trazia comigo, em uma pasta, para
esse fim e que não sei onde foi parar (perdi tanta coisa que hoje me faz uma falta
enorme!).
Fiquei por quatro horas nesse
local. Nesse tempo todo, fui abordado, apenas, por duas pessoas. Ambas, de vida
irregular. Gente infeliz, solitária e provavelmente sem futuro. O primeiro dos
meus interlocutores foi um homossexual. Ele queria porque queria manter
relações sexuais comigo. Fiquei horrorizado! Não gosto de homens! Esta nunca
foi a minha praia! E embora não condene os veados (afinal, gosto é gosto) e não
tenha preconceito a respeito (quem sou eu para ditar moral aos outros!) essa insistência
me incomodou e tive que ser áspero com o indivíduo. Precisei, até mesmo,
ameaçá-lo. Fazendo gracinhas, o veado, finalmente, foi embora.
Não demorou muito, uma prostituta
sentou-se ao meu lado. E foi logo para o ataque, pondo a mão em minha coxa, à
procura do meu sexo. Embora gostando da manipulação, protestei. A mulher, uma
mulatinha até que jeitosa, propôs que dormíssemos juntos, por uma determinada
importância que não me recordo qual foi, mas que sei que era irrisória. Estas
duas abordagens chocaram-me profundamente.
Eu, que até àquela época vivera
me instruindo na virtude, que há apenas um mês havia deixado um colégio
interno, dirigido por religiosos, não concebia ter um envolvimento dessa
espécie. Fiquei profundamente chocado com o fato de alguém precisar vender o
corpo para sobreviver. O que senti, então, além de piedade pela infeliz
prostituta e raiva contra a sociedade, não sei, mesmo hoje que sou mais vivido,
menos ingênuo e nem um pouco inocente, exprimir com clareza. Posso até afirmar,
com convicção, que foi nessa noite que deixei de ser criança. E eu tinha apenas
19 anos! Compreendi, desde então, que o mundo não era aquela maravilha que eu
pensava que fosse (e que ainda sonho que um dia possa vir a ser).
Lembrei-me de uma crônica de Luís
Martins, publicada na seção “Primeira Coluna” – que ele assinava diariamente no
jornal O Estado de São Paulo – em 14 de dezembro de 1963, que diz: “A noite é
um grande mistério. É durante a noite que a vida toma novas formas, que os
seres e as coisas se modificam”. E o cronista arremata dessa forma esse
magnífico texto: “Assim a noite, sendo incubadora de vida – as flores abrem, as
crianças crescem – é também um laboratório de ruínas. É durante a noite que os
doentes graves pioram; é durante a noite que a morte caminha sorrateiramente em
direção às suas presas, com a cumplicidade das sombras e do silêncio, como um
verme voraz, numa lenta obra de destruição, que só é levada a termo com o
completo extermínio do objeto destruído”.
Creio, pois, que isto explica,
mesmo que em parte, a razão do meu fascínio e, simultaneamente, do meu temor
pelas noites, período em que, por sinal, meus melhores textos foram “gestados”.
Eles nasceram no silêncio às vezes sepulcral das altas madrugadas, rompido,
apenas, de quando em vez, pelo latido distante de um cão ou pelo ronco de motor
de algum carro, de qualquer noctívago, à procura do que só Deus sabe.
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