Monday, February 20, 2017

Na calada da noite


Pedro J. Bondaczuk


A noite me fascina, mas também me assusta. Fui dessas crianças que sempre tiveram medo do escuro. Só conseguia dormir com uma luz acesa no quarto, proveniente de um abajur no criado-mudo para dissipar, pelo menos em parte, a escuridão, e que só era desligado quando os primeiros clarões do novo dia penetravam pelas frestas da veneziana. A razão? Jamais consegui saber.

No início da adolescência, passava noites e mais noites em claro, compondo versos – que nem sei onde foram parar – de forma frenética, diria até delirante, ouvindo rádio e sonhando, sonhando acordado em me tornar um grande escritor. Mais tarde, gostava de perambular, sem destino, pelas ruas (naquele tempo não havia a violência de hoje), observando as pessoas, parando nos barzinhos que encontrava pelo caminho para beber alguma coisa e para dois dedos de prosa. E só voltava para casa quando o dia começava a raiar.

Depois...veio o trabalho. Por anos e anos a noite foi o período em que exerci a minha atividade de jornalista, mais especificamente, de editor. Houve ocasiões (que duraram décadas), em que começava minha jornada às 15 horas e só a encerrava às quatro da madrugada do dia seguinte. Nunca me saíram da memória os tipos que conheci nas ruas de São Paulo, nessas madrugadas vadias do passado.

Um tal de A. R. Smith (não tenho a mínima idéia do que essas iniciais significam), escreveu, em certa ocasião – encontrei essa citação numa revista e decidi anotar: "Não há solidão mais terrível nem mais impressionante que aquela que existe no coração de uma enorme e fria cidade". Pude (reitero) comprovar isso na prática. Não há mesmo.
Lembro-me que, em 1961, quando trabalhava como locutor de rádio (e eu tinha só 19 anos, vejam só!), numa dada noite, ao voltar de Santo André (eu trabalhava na Rádio ABC dessa cidade), rumo a Santo Amaro (morava numa pensão desse distrito de São Paulo), perdi o último ônibus para casa.

Tendo que esperar até às seis horas da manhã, quando a linha voltaria a circular (eram duas da madrugada), decidi preencher, de alguma forma, esse tempo. Caminhei, vagarosamente, sem destino definido, pelas ruas então desertas do coração da metrópole (o atual Centro Velho paulistano). Parei em uma banca e comprei umas cinco ou seis revistas (lembro-me que foram a "X-9", "Gazeta Esportiva Ilustrada", "Revista do Rádio", "Equipe" e mais duas especializadas na publicação de letras de músicas) e o jornal "O Estado de São Paulo".

Passei por um barzinho, tomei um café e um "rabo de galo" (pinga com cinzano), comi um ovo empanado e comprei um maço de cigarros Luiz XV (sem filtro, claro, pois na época apenas o Minister tinha filtro e era muito caro e fraco para o meu gosto).

Andando, sem nenhuma pressa, observava o rosto das pessoas com as quais cruzava, que trabalhavam nesse horário tão ingrato e estavam entrando ou saindo de serviço. Percebia. em cada uma delas (ou julgava perceber) uma espécie de resignação, de solidão, de mudo e desesperado apelo à cordialidade, à companhia e ao diálogo. Eu também me sentia assim. Nem me passava pela cabeça, na ocasião, a mínima possibilidade de assalto. Os tempos, nessa época, eram menos violentos, conforme já destaquei.

Cansado de caminhar, sentei-me num banco, sob um abrigo de ônibus que fica ao lado da escadaria que dá acesso à Galeria Prestes Maia, no Viaduto do Chá, em pleno Vale do Anhangabaú. Lá, para que o tempo passasse mais depressa, fiquei a rabiscar o esboço de um poema em um caderno, que sempre trazia comigo, em uma pasta, para esse fim e que não sei onde foi parar (perdi tanta coisa que hoje me faz uma falta enorme!).

Fiquei por quatro horas nesse local. Nesse tempo todo, fui abordado, apenas, por duas pessoas. Ambas, de vida irregular. Gente infeliz, solitária e provavelmente sem futuro. O primeiro dos meus interlocutores foi um homossexual. Ele queria porque queria manter relações sexuais comigo. Fiquei horrorizado! Não gosto de homens! Esta nunca foi a minha praia! E embora não condene os veados (afinal, gosto é gosto) e não tenha preconceito a respeito (quem sou eu para ditar moral aos outros!) essa insistência me incomodou e tive que ser áspero com o indivíduo. Precisei, até mesmo, ameaçá-lo. Fazendo gracinhas, o veado, finalmente, foi embora.

Não demorou muito, uma prostituta sentou-se ao meu lado. E foi logo para o ataque, pondo a mão em minha coxa, à procura do meu sexo. Embora gostando da manipulação, protestei. A mulher, uma mulatinha até que jeitosa, propôs que dormíssemos juntos, por uma determinada importância que não me recordo qual foi, mas que sei que era irrisória. Estas duas abordagens chocaram-me profundamente.

Eu, que até àquela época vivera me instruindo na virtude, que há apenas um mês havia deixado um colégio interno, dirigido por religiosos, não concebia ter um envolvimento dessa espécie. Fiquei profundamente chocado com o fato de alguém precisar vender o corpo para sobreviver. O que senti, então, além de piedade pela infeliz prostituta e raiva contra a sociedade, não sei, mesmo hoje que sou mais vivido, menos ingênuo e nem um pouco inocente, exprimir com clareza. Posso até afirmar, com convicção, que foi nessa noite que deixei de ser criança. E eu tinha apenas 19 anos! Compreendi, desde então, que o mundo não era aquela maravilha que eu pensava que fosse (e que ainda sonho que um dia possa vir a ser).

Lembrei-me de uma crônica de Luís Martins, publicada na seção “Primeira Coluna” – que ele assinava diariamente no jornal O Estado de São Paulo – em 14 de dezembro de 1963, que diz: “A noite é um grande mistério. É durante a noite que a vida toma novas formas, que os seres e as coisas se modificam”. E o cronista arremata dessa forma esse magnífico texto: “Assim a noite, sendo incubadora de vida – as flores abrem, as crianças crescem – é também um laboratório de ruínas. É durante a noite que os doentes graves pioram; é durante a noite que a morte caminha sorrateiramente em direção às suas presas, com a cumplicidade das sombras e do silêncio, como um verme voraz, numa lenta obra de destruição, que só é levada a termo com o completo extermínio do objeto destruído”.

Creio, pois, que isto explica, mesmo que em parte, a razão do meu fascínio e, simultaneamente, do meu temor pelas noites, período em que, por sinal, meus melhores textos foram “gestados”. Eles nasceram no silêncio às vezes sepulcral das altas madrugadas, rompido, apenas, de quando em vez, pelo latido distante de um cão ou pelo ronco de motor de algum carro, de qualquer noctívago, à procura do que só Deus sabe.    


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