Comércio
com fantasmas
Pedro J.
Bondaczuk
A correspondência entre escritores constitui
importante acervo de informações sobre sua vida, seus gostos, suas idéias, suas
idiossincrasias, suas amizades e até (ou, quem sabe, principalmente) suas
inimizades. Após sua morte, tornam-se, não raro, preciosa coleção de
documentos, onde seus biógrafos, via de regra, se abastecem, para explicar
determinadas passagens da sua vida. Estão aí as cartas escritas e recebidas por
Fedor Dostoievski, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e tantos outros,
transformadas em livros, alguns verdadeiros best-sellers.
Antes do advento do e-mail, escrevi (e recebi)
poucas cartas. Preguiça minha, claro! Por causa dessa inércia, afastei-me de
amigos muito queridos, aos quais prezava muito e de quem perdi contato. Pena!
Ademais, a maioria da minha correspondência se perdeu nas várias mudanças de
casa por que passei, até adquirir a
atual, em que resido, e que jamais pretendo me desfazer. Por conseqüência, esse enorme acervo
tornou-se irrecuperável. Puro relaxo meu, que prometo não mais repetir!
Passei a ter consciência da importância de conservar
minha correspondência para a posteridade apenas de uns dez anos para cá. Desde
então (aprendi a lição), arquivo todos os e-mails, tanto os que escrevo, quanto
os que recebo (claro, aqueles que possam conter informações úteis aos meus
eventuais futuros biógrafos).
Tive o capricho, também, de digitar, e arquivar na
memória do computador, as cartas que se salvaram da destruição, ou do extravio,
ou então da perda, não importa. Infelizmente, restaram poucas delas para contar
a história. Estimo que dois quintos (ou menos) das que recebi (ou que escrevi)
foram recuperados. E estas últimas só escaparam de se perder por causa do
hábito que sempre cultivei de escrever cartas com cópia.
A correspondência que consegui preservar melhor foi
a que mantive com o jornalista, poeta, conferencista, acadêmico e
extraordinária figura humana, Maurício de Moraes, já falecido, mineiro de Ouro
Fino, cidade que, aliás, preserva a sua memória. Não faz mais do que a obrigação!
Afinal, esse meu querido e saudoso amigo amou, como ninguém, sua pequenina, mas
acolhedora terra natal, que perpetuou em magníficos versos e em marcantes
crônicas.
O que consegui salvar, todavia, foram apenas 16
cartas que lhe escrevi (a primeira, datada de 12 de janeiro de 1993 e a última,
de 20 de julho desse mesmo ano). Pelos assuntos que comento com o poeta, dá
para deduzir algumas coisas que ele me escreveu, no seu estilo lírico, mas
sempre bem-humorado. Aliás, o bom-humor e o otimismo sempre foram
características marcantes de Maurício de Moraes. Era uma pessoa que nunca vi
triste. Vivia em outro mundo. Com ele não tinha “tempo quente”, como diz o
povão. Tinha uma espécie de filtro na mente e só enxergava o lado belo e nobre
da vida. Teve, por conseqüência, influência marcante no meu comportamento e na
minha mentalidade, notadamente nas muitas crises existenciais que atravessei (e
superei).
A primeira das cartas que lhe escrevi começa assim:
“Campinas, 12 de janeiro de 1993
Caro amigo e irmão de ideais Maurício:
Espero que
esta carta o encontre gozando de paz e saúde, na companhia dos seus. Antes de
tudo, quero penitenciar-me por minha imperdoável falta de delicadeza, ao não
retribuir a tempo o seu gentil cartão de boas festas, com mensagem tão profunda
e emocionante, que só pode sair, mesmo, da alma, da sensibilidade e do talento
de um grande poeta, como você é.
Você sabe que
a amizade que diz ter por mim é recíproca. Nem precisava dizer, não é mesmo?!
Você tem certeza disso! Afinal, não nos conhecemos ontem. Aliás, devo confessar
que o considero, se não o único, pelo menos um dos raros verdadeiros amigos que
me restaram. Muita gente me jura "eterna" e desinteressada amizade.
Mas na hora do vamos ver...É puro interesse!
Deixa pra lá!
Concordo com
você quando observa que não deixa de ser estranho o fato de dois amigos, que se
gostam tanto e que residem na mesma cidade, se comunicarem apenas por carta.
Mas você sabe do meu empenho na profissão. Não tenho tempo nem para respirar!
(...)”
A última das cartas que lhe escrevi e que consegui
preservar tem este início:
“Campinas, 20
de julho de 1993
Amigo
Maurício:
Nesta
terça-feira gelada, com os termômetros das ruas da cidade marcando cinco graus
centígrados, sinto-me como se estivesse na Sibéria. Ainda assim, dez horas da
noite, concluído o meu trabalho, sento-me diante da familiar máquina de
escrever, com os dedos enregelados, para dar continuidade ao nosso interminável
"papo epistolar".
Melhor seria,
claro, se estivéssemos cara a cara, em casa ou em algum desses tantos bares
aconchegantes que ainda há em Campinas, com um copo de bom uísque (digamos, um
Jack Daniel's 12 anos, por exemplo), "cowboy" (isto é, sem gelo e sem
soda), nas mãos, a trocarmos confidências, falando da vida, do trabalho, da
cultura e, principalmente, de literatura, nossa mútua paixão. Como isso não é
possível, é melhor nos contentarmos mesmo com essa troca de cartas, para
sabermos notícias um do outro e até para fazermos pequenas "fofocas"
(por que não?!).
Primeiro vou
falar da minha saúde, que tanto vem preocupando o amigo. Não se preocupe!
"Vaso ruim não quebra", como diz o povão. O fato de eu ser chorão
impressiona algumas pessoas. Afinal, "quem não chora, não mama". Mas
tenho uma resistência física "cavalar". Não é qualquer achaquezinho
besta que me derruba.
Apesar de me
sentir cansado (devo estar com a imunidade muito baixa e com algum foco
infeccioso no organismo), estou razoavelmente bem. A conjuntivite cedeu quase
por completo, embora a acuidade visual do olho direito tenha ficado muito
reduzida. Não faz mal! Se a natureza quer assim, ficarei caolho! O que fazer?!
É o preço que devo pagar por tantas e tantas horas de leitura e de texto.
Aliás, é um tributo irrisório para tamanho prazer intelectual. (...)”
As cartas eram extensas, com média de dez páginas de
vinte linhas, em espaço dois. Eram descontraídas e brincalhonas, como deve ser
a correspondência entre dois amigos. Os que as leram juram que só essas 16 que
se salvaram dariam um livro interessante. Bondade deles. Não chegam a
tanto.
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