Águas de presságio
Pedro
J. Bondaczuk
O poeta português Fernando
Pessoa, com sua enorme sensibilidade e reconhecido talento, nos ensina, num
determinado texto (dos tantos que nos legou): "A poesia encontra-se em
todas as coisas – na terra e no mar, no lago e na margem do rio”. Ou seja,
encontramo-la, “também”, na água, bastando procurá-la e, posteriormente,
transmiti-la. Eu diria: há poesia principalmente nesse incrível e vital
líquido. E por que particularizo essa substância, sem desprezar, todavia, as
demais? Porque sem ela, não haveria vida. Não, pelo menos, como a conhecemos.
Chega a ser redundante afirmar que a água é essencial para todo e qualquer ser
vivo, animal e/ou vegetal (pelo menos dos conhecidos, supondo que haja outros,
diferentes dos da Terra, em outras partes do universo que a mim parece ser
infinito, ao contrário do que asseguram os doutos físicos, do alto de suas
teorias). Se há tanta poesia, sobretudo na água, por que há tão poucos poemas
celebrando esse mágico e essencial líquido? Convenhamos, trata-se de um tema
pouco explorado por poetas quer do presente, quer do passado.
Tenho em mãos, porém,
uma jóia literária, uma preciosidade editorial, que é o livro “Águas de
presságio”, da poetisa Sarah de Oliveira Passarella – que tive o privilégio e a
honra de prefaciar – tratando,
liricamente, com sensibilidade e inteligência, exatamente desse tema, como o
próprio título já sugere. Tão logo recebi o convite da autora para redigir o
prefácio, mergulhei de cabeça nos originais dos 47 poemas que o compõem, para
redigi-lo com conhecimento de causa. E,
à medida que ia lendo cada uma das peças literárias que o compõem, meu
encantamento só crescia, exponencialmente, assim como minha responsabilidade em
apresentar a obra ao leitor. São 87 páginas de poesia pura, dessas de tirar o
fôlego dos amantes do gênero. Temo, todavia, que meu texto de apresentação
tenha ficado aquém do real valor do livro, embora eu tenha posto nele o máximo
de emoção. Fiquei sabendo, depois, que com essa obra, antes dela ser impressa e
publicada, Sarah obteve o primeiro lugar no “46º Concurso Nacional de Contos e
Poesia de 2015”, promovido pela Academia de Letras e Artes de Araguari. Pudera!
Com todo o respeito aos demais concorrentes, não havia como “Águas de
presságio” deixar de ganhar.
Caso tivesse que
explicar tamanho entusiasmo com o teor do livro, recorreria, novamente, a
Fernando Pessoa, quando afirmou: “É que poesia é espanto, admiração, como de um
ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito, diante
das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para
recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia,
não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se
recordando". Os versos mágicos de Sarah têm essa característica. Ou seja,
causam “espanto e admiração” ao privilegiado leitor que tem acesso a eles.
Acompanhem meu
raciocínio. Nosso Planeta, pelas substâncias de que é formado, convenhamos, tem
nome inadequado: Terra! Deveria chamar-se, logicamente, "Água"!
Afinal, dois terços de sua superfície são formados por essa incrível
substância, produto de dois elementos que, isoladamente, são dos mais
abundantes no universo, encontrados
como gases que, no entanto, assume (pelo menos na Terra) as três formas
da natureza, dependendo das condições de temperatura: sólida, líquida ou
gasosa. O terço restante do Planeta, é 24% inabitável, constituído de regiões
rochosas e desertos arenosos, bem como de solos cobertos de gelo. Desse terço,
portanto, restam apenas 76% de solos utilizáveis para o homem habitar,
construir cidades, arar e semear e assim obter os alimentos necessários à
sobrevivência. A Terra tem, para que vocês tenham uma idéia da sua inadequação
de nome, estimados um sextilhão e quatrocentos e trinta quintilhões de quilos
de água! Ou seja, um vírgula quarenta e três vezes dez elevado à vigésima
primeira potência de quilos. Nesta altura vocês, certamente, deverão estar
espantados quando se diz que essa substância pode vir a faltar algum dia,
diante dessa colossal quantidade. É muita coisa, não é mesmo?! Será que os
ecologistas não estão vendo fantasmas? Não estaria havendo um falso e
desnecessário alarmismo? Não seria uma manifestação histérica e sem sentido? O
que vocês acham?
Frise-se que dessa
enorme quantidade de água, 97,4% estão nos oceanos. É, portanto, imprópria para
o consumo de animais e vegetais da superfície terrestre (só as espécies
marinhas se beneficiam dessa monumental reserva), a menos que seja
dessalinizada, para que possa ser usada para beber, irrigar lavouras ou para
propósitos industriais, processo, aliás, caríssimo e inviável para a grande,
esmagadora maioria dos povos. A parte “potável” é de apenas 2,6%, incluindo,
aí, as geleiras das calotas polares e os lençóis subterrâneos. Assim sendo, se
fôssemos analisar todos os seres vivos do mundo e chegássemos a uma conclusão
média, provavelmente encontraríamos um resultado não muito diferente deste: 80%
de água e 20% de substâncias secas (inclusive em nosso organismo). O que é o
processo de envelhecimento humano senão a perda de líquidos no corpo? Pode-se
dizer, grosso modo, que "envelhecer é secar", daí a necessidade que
os idosos têm de ingestão de água em quantidade maior do que, digamos, uma pessoa de 18 ou de 30 anos.
Voltando à obra de
Sarah de Oliveira Passarella, observei, em determinado trecho do meu prefácio:
“Curioso de se notar é o fato de, apesar do título do livro (‘Águas de
presságio’) se referir ao mais precioso líquido que há para nós, humanos (indispensável,
aliás, a qualquer espécie de vida, como a conhecemos), a despeito dessa
substância se fazer onipresente praticamente da primeira à derradeira página
dessa rica obra, a maioria dos poemas nela inseridos foi composta em uma das
regiões mais secas, mais tórridas e mais áridas do mundo: no Oriente Médio
(Israel, Cisjordânia, Faixa de Gaza, Egito etc.). Sarah trilhou os mesmos
caminhos que Cristo percorreu há mais de dois mil anos em sua passagem pela
Terra, sobretudo Belém e Jerusalém. Testemunhou, pois, a tradição, mas também
viu de perto as rixas, antagonismos políticos e a violência que há dois
milênios mancharam (e ainda mancham) de sangue lugares tão sagrados, que
deveriam ser reverenciados com humildade, piedade e supremo respeito, mas que
foram transformados em campos de batalha de três grandes correntes religiosas:
cristianismo, judaísmo e islamismo”.
Como faço costumeiramente,
sempre que comento um livro de poesias, partilho com você, sensível e
inteligente leitor, um dos poemas que compõem essa coletânea (exatamente o que
lhe dá título):
“Serpentearam
águas tão cristalinas,
rolaram
águas turvas, azuladas.
Ondas
beijaram a morna areia de
mares
glaucos e esmeraldinos,
nestas
viagens de trajetórias tantas
que
começam na ansiedade
e
terminam na sabedoria.
Nos
meandros da poesia
fui
burilando a paisagem
de
horas infindas
em
águas de calmaria
que
levaram meu barquinho de papel
pelas
sarjetas da vida, indo embora
levando
minha infância ao léu (...)”
Iniciei o prefácio do
livro de Sarah da seguinte forma: “’A poesia é conhecimento, salvação, poder,
abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é
revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação
interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento
maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração,
respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é
alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero’. Esta magnífica
definição de poesia cabe como uma luva para caracterizar este novo livro de
Sarah de Oliveira Passarella (o oitavo da sua produção), intitulado ‘Águas de
presságio’. Quem definiu dessa forma esplêndida essa arte que emociona e ao
mesmo tempo faz pensar só podia ser um
poeta. E foi. Foi escrita por um dos mais hábeis e lúcidos escritores do século
XX. Quem a fez foi o poeta, ensaísta e diplomata mexicano Octávio Paz, ganhador
do Prêmio Nobel de Literatura de 1990.
Texto magnífico, como se vê, exposto de forma poética, posto que
redigido em prosa. E que parece, sem nenhum exagero, ter sido escrito
propositalmente, de encomenda, para caracterizar este ‘Águas de presságio’ de
Sarah de Oliveira Passarella. Não o foi, mas bem que poderia ter sido”.
E prossegui assim minha
apresentação: “A poesia dessa mulher culta e sensível, que maneja, com
habilidade, inteligência e sensibilidade esse instrumento frágil e
relativamente pobre, que é a palavra, satisfaz todas as condições propostas por
Octávio Paz. É ‘conhecimento, salvação, poder, abandono’. E mais: ‘revela este mundo; cria outro’. E
mais ainda: ‘é convite à viagem; regresso à terra natal. É inspiração,
respiração, exercício muscular. É súplica ao vazio, diálogo com a ausência’. É
tudo isso e muito mais”. Se tivesse, portanto, que definir a poesia de Sarah de
Oliveira Passarella numa só palavra, a chamaria, sem titubear, de ‘deslumbrante’!
Se tiverem a oportunidade de adquirir este livro, façam-no, que não irão se
frustrar. Mas leiam-no, confiram e certamente me darão razão.
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