Tuesday, March 15, 2016

Trajetória acidentada do livro

Pedro J. Bondaczuk

O livro foi, durante milênios, objeto bastante raro, por isso caro e inacessível para a imensa maioria das pessoas. Isso, apenas, começou a mudar, embora a mudança tenha sido muito lenta, não propriamente com a invenção dos tipos móveis por parte de Johannes Guttenberg, como muitos supõem – embora sua façanha tenha contribuído para sua disseminação – mas por um acontecimento ocorrido três séculos depois, o XVIII: a produção industrial de papel. Sua trajetória foi, portanto, cheia de percalços, com avanços e recuos, sendo, sobretudo, acidentada. O maior obstáculo (posto que não o único) para a popularização do livro, tinha tudo a ver com custos. O preço, tanto do papiro, quanto do pergaminho (as duas superfícies relativamente práticas e manejáveis para a escrita), era elevadíssimo. Ademais, o custo não podia ser diluído na base de uma economia de escala, já que as formas de reprodução não permitiam que se produzissem muitas cópias.

O original, o texto que o escritor redigia, teria que ser, necessariamente, copiado á mão, num processo moroso e cansativo, caso houvesse alguém interessado em contar com um exemplar. E essa tarefa raramente cabia ao autor. Se mais de uma pessoa manifestasse interesse na obra, dado o prestígio de quem a produziu, teriam que haver tantas cópias quantos fossem os pretendentes. E estas, reitero, eram feitas, todas e exclusivamente, à mão. Com o tempo, intelectuais com visão de comércio criaram, até, uma profissão específica: a de copistas. O leitor já imaginou o quanto poderia custar uma edição, digamos, de dez exemplares? Certamente uma fortuna. Tinham que ser levados em conta, além do custo dos materiais (papiros ou pergaminhos, tinta, penas e apetrechos para a “montagem” dos volumes etc.etc.etc.) o trabalho dos que iriam fazer as dez cópias.

O tempo de entrega, por outro lado, era enorme. Levava meses, quando não anos. Além de tudo, a correção dos textos nem sempre era respeitada. Imaginem um copista que se distraísse e cometesse algum erro. Ele não tinha o cômodo recurso que o computador nos fornece. Não tinha como “apagar” o erro. Alguns usavam o recurso de grafar algo como “digo”, após a palavra errada, e a seguir escrever a correta. Nem todos, porém, tinham essa preocupação e capricho, notadamente quando tinham que cumprir prazos com os clientes. Passavam por cima dos erros como se não os percebessem e tocavam adiante. Por isso, mesmo existindo a escrita, predominou, por milênios, praticamente em todo o mundo, a cultura oral.

Não estranho, portanto, que muitos notáveis filósofos jamais tenham escrito uma única e reles linha, quanto mais algum livro. É provável que poucos deles sequer soubessem escrever. Sócrates, por exemplo, nunca escreveu seus questionamentos filosóficos. O que fazia era anunciar, em praça pública, que faria suas preleções a tal hora e em tal lugar. Seus discípulos que memorizassem suas idéias e, caso soubessem escrever, fizessem as próprias anotações. Não fosse a admiração que Platão (que além de filósofo era excelente escritor) tinha por ele e jamais conheceríamos o que esse polêmico e genial sábio pensava. A lógica diz que inúmeros pensadores, talvez a maioria, não tiveram a mesma sorte de Sócrates. Jamais alguém se interessou em registrar seus ensinamentos por escrito. Por isso, as gerações seguintes (incluindo a nossa) ficaram privadas de idéias magníficas que poderiam, quem sabe, contribuir para a evolução intelectual e moral da humanidade, tornando-a melhor do que é hoje. No entanto, sequer sabemos se existiram mesmo e, em caso afirmativo, quem foram, onde viveram e o que pensaram.

Outra grande dificuldade para as pessoas possuírem livros, e não somente bibliotecas públicas, era sua não portabilidade. Por séculos, na Antiguidade, o material empregado era o papiro. Dependendo da extensão da obra, ela poderia ser um imenso calhamaço, especificamente um rolo de até 18 metros ou mais de comprimento! Para poderem ser lidos, exigiam móveis apropriados. Os raros felizardos que fossem proprietários de mais de um exemplar dispunham de armários apropriados, feitos especialmente para seu armazenamento. Os livros eram acondicionados em divisórias, arrumados uns ao lado de outros, com etiquetas bem visíveis contendo os respectivos títulos. As coisas melhoraram bastante, sobretudo em Roma – e os romanos foram grandes leitores – com uma invenção genial ocorrida no século IV a.D: o “códex”. Ou seja, o uso das duas faces do pergaminho (que passara a ser o material preferencial para a produção de livros, permitindo que estes tivessem formato bastante semelhante ao que têm hoje). Ainda assim, esse novo aspecto exigiu novos móveis sobre os quais os volumes ficassem deitados e acorrentados. Não podiam, pois, ser levados de um lado para outro, como os livros de hoje. Tinham que ser lidos, somente, em locais específicos.

Em Roma, aliás, floresceu o que para a época pode ser considerado o embrião de uma “indústria editorial”. Foi por volta do século I a. C.. Os romanos mais abastados, que podiam investir em cultura, começaram a criar bibliotecas particulares, o que para a época era algo revolucionário, com, sobretudo, obras gregas e latinas. Não por acaso, portanto, Roma tornou-se superpotência mundial do seu tempo, não apenas militar, mas também cultural. A crescente procura por livros na “Cidade Eterna” deu origem ao comércio de copistas. E não apenas isso, mas ensejou o aparecimento de livrarias, além do estabelecimento de várias bibliotecas públicas. O avanço principal, no entanto, foi o aumento exponencial da quantidade de alfabetizados, ao contrário do que ocorria no resto do mundo. Pena que nos séculos seguintes o livro ficasse restrito, e por mais de um milênio, a inacessíveis mosteiros, tornando-se monopólio do clero.


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