Trajetória acidentada
do livro
Pedro
J. Bondaczuk
O livro foi, durante
milênios, objeto bastante raro, por isso caro e inacessível para a imensa
maioria das pessoas. Isso, apenas, começou a mudar, embora a mudança tenha sido
muito lenta, não propriamente com a invenção dos tipos móveis por parte de Johannes
Guttenberg, como muitos supõem – embora sua façanha tenha contribuído para sua
disseminação – mas por um acontecimento ocorrido três séculos depois, o XVIII:
a produção industrial de papel. Sua trajetória foi, portanto, cheia de
percalços, com avanços e recuos, sendo, sobretudo, acidentada. O maior
obstáculo (posto que não o único) para a popularização do livro, tinha tudo a
ver com custos. O preço, tanto do papiro, quanto do pergaminho (as duas
superfícies relativamente práticas e manejáveis para a escrita), era
elevadíssimo. Ademais, o custo não podia ser diluído na base de uma economia de
escala, já que as formas de reprodução não permitiam que se produzissem muitas
cópias.
O original, o texto que
o escritor redigia, teria que ser, necessariamente, copiado á mão, num processo
moroso e cansativo, caso houvesse alguém interessado em contar com um exemplar.
E essa tarefa raramente cabia ao autor. Se mais de uma pessoa manifestasse
interesse na obra, dado o prestígio de quem a produziu, teriam que haver tantas
cópias quantos fossem os pretendentes. E estas, reitero, eram feitas, todas e
exclusivamente, à mão. Com o tempo, intelectuais com visão de comércio criaram,
até, uma profissão específica: a de copistas. O leitor já imaginou o quanto
poderia custar uma edição, digamos, de dez exemplares? Certamente uma fortuna.
Tinham que ser levados em conta, além do custo dos materiais (papiros ou
pergaminhos, tinta, penas e apetrechos para a “montagem” dos volumes
etc.etc.etc.) o trabalho dos que iriam fazer as dez cópias.
O tempo de entrega, por
outro lado, era enorme. Levava meses, quando não anos. Além de tudo, a correção
dos textos nem sempre era respeitada. Imaginem um copista que se distraísse e
cometesse algum erro. Ele não tinha o cômodo recurso que o computador nos
fornece. Não tinha como “apagar” o erro. Alguns usavam o recurso de grafar algo
como “digo”, após a palavra errada, e a seguir escrever a correta. Nem todos,
porém, tinham essa preocupação e capricho, notadamente quando tinham que
cumprir prazos com os clientes. Passavam por cima dos erros como se não os
percebessem e tocavam adiante. Por isso, mesmo existindo a escrita, predominou,
por milênios, praticamente em todo o mundo, a cultura oral.
Não estranho, portanto,
que muitos notáveis filósofos jamais tenham escrito uma única e reles linha,
quanto mais algum livro. É provável que poucos deles sequer soubessem escrever.
Sócrates, por exemplo, nunca escreveu seus questionamentos filosóficos. O que
fazia era anunciar, em praça pública, que faria suas preleções a tal hora e em
tal lugar. Seus discípulos que memorizassem suas idéias e, caso soubessem
escrever, fizessem as próprias anotações. Não fosse a admiração que Platão (que
além de filósofo era excelente escritor) tinha por ele e jamais conheceríamos o
que esse polêmico e genial sábio pensava. A lógica diz que inúmeros pensadores,
talvez a maioria, não tiveram a mesma sorte de Sócrates. Jamais alguém se
interessou em registrar seus ensinamentos por escrito. Por isso, as gerações
seguintes (incluindo a nossa) ficaram privadas de idéias magníficas que
poderiam, quem sabe, contribuir para a evolução intelectual e moral da
humanidade, tornando-a melhor do que é hoje. No entanto, sequer sabemos se
existiram mesmo e, em caso afirmativo, quem foram, onde viveram e o que
pensaram.
Outra grande
dificuldade para as pessoas possuírem livros, e não somente bibliotecas
públicas, era sua não portabilidade. Por séculos, na Antiguidade, o material
empregado era o papiro. Dependendo da extensão da obra, ela poderia ser um
imenso calhamaço, especificamente um rolo de até 18 metros ou mais de
comprimento! Para poderem ser lidos, exigiam móveis apropriados. Os raros
felizardos que fossem proprietários de mais de um exemplar dispunham de
armários apropriados, feitos especialmente para seu armazenamento. Os livros
eram acondicionados em divisórias, arrumados uns ao lado de outros, com
etiquetas bem visíveis contendo os respectivos títulos. As coisas melhoraram
bastante, sobretudo em Roma – e os romanos foram grandes leitores – com uma
invenção genial ocorrida no século IV a.D: o “códex”. Ou seja, o uso das duas
faces do pergaminho (que passara a ser o material preferencial para a produção
de livros, permitindo que estes tivessem formato bastante semelhante ao que têm
hoje). Ainda assim, esse novo aspecto exigiu novos móveis sobre os quais os
volumes ficassem deitados e acorrentados. Não podiam, pois, ser levados de um
lado para outro, como os livros de hoje. Tinham que ser lidos, somente, em
locais específicos.
Em Roma, aliás,
floresceu o que para a época pode ser considerado o embrião de uma “indústria
editorial”. Foi por volta do século I a. C.. Os romanos mais abastados, que
podiam investir em cultura, começaram a criar bibliotecas particulares, o que
para a época era algo revolucionário, com, sobretudo, obras gregas e latinas.
Não por acaso, portanto, Roma tornou-se superpotência mundial do seu tempo, não
apenas militar, mas também cultural. A crescente procura por livros na “Cidade
Eterna” deu origem ao comércio de copistas. E não apenas isso, mas ensejou o
aparecimento de livrarias, além do estabelecimento de várias bibliotecas
públicas. O avanço principal, no entanto, foi o aumento exponencial da
quantidade de alfabetizados, ao contrário do que ocorria no resto do mundo. Pena
que nos séculos seguintes o livro ficasse restrito, e por mais de um milênio, a
inacessíveis mosteiros, tornando-se monopólio do clero.
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