Tuesday, March 29, 2016

Cordiais desconhecidos

Pedro J. Bondaczuk

O primeiro (e único) escritor de língua portuguesa a ser premiado com o Nobel de Literatura foi José Saramago, em 1998, o que causou certa agitação nas editorias de Cultura dos principais jornais brasileiros que pouco (ou nada) conheciam desse autor. A premiação aconteceu quase um século após ser instituída (97 anos, para ser mais exato), o que reflete, sobretudo, desconhecimento dos jurados da Academia de Ciências sueca sobre as obras de poetas, romancistas, contistas etc.etc.etc. que se utilizam dessa que Olavo Bilac tão bem caracterizou como “última flor do Lácio, inculta e bela”. É certo que essa ignorância causa espanto e constrangimento a nós, cultores desse belo idioma de Camões. Mas o que espanta muito mais é o desconhecimento nosso, brasileiro, dos principais escritores portugueses que atuaram, sobretudo, no século XX.

Bem, a recíproca é verdadeira. O desconhecimento é mútuo (ou, pelo menos, era até a instituição do Prêmio Camões, em 1989). Se escritores portugueses contemporâneos são estranhos no Brasil e se brasileiros são ilustres desconhecidos em Portugal, imaginem angolanos, moçambicanos, guineeenses e caboverdianos, entre outros, nos dois países! Apesar de, com o advento da internet, as coisas terem melhorado, e muito, nesse aspecto, ainda estão muito distantes do ideal. E não era para isso acontecer. Afinal, não há sequer o entrave do idioma para justificar tanto desconhecimento, como ocorre com autores europeus, asiáticos, norte-americanos e africanos que não falem nossa língua.

 Eu, que não sou nenhum especialista em Literatura (mas que tenho orgulho de ter bom gosto literário), se, por uma dessas artimanhas do acaso, fosse designado como jurado da Academia de Ciências sueca, teria escolhido para ganhar o primeiro Prêmio Nobel para autores de língua portuguesa, não José Saramago. Minha escolha teria recaído sobre Vergílio Ferreira, de obra muito mais vasta e mais eclética (sobre o qual me proponho a comentar oportunamente), já que este ano de 2016 assinala o centenário de seu nascimento. Observo que estou excluindo, dessa (impossível) hipótese, os brasileiros, por ser óbvio que premiaria (sem nenhum exagero) pelo menos vinte deles. Claro, nenhum jamais foi premiado e raríssimos foram ao menos cogitados. Isso não quer dizer que não premiaria o autor de “Ensaios sobre a cegueira”. Premiaria, sim. Mas há muitos e muitos e muitos outros escritores portugueses que mereceram (mas não ganharam) o Nobel até mais do que Saramago. E, dos mais recentes, Vergílio Ferreira é o principal.

Não entendo, por exemplo, a razão de um Guerra Junqueiro não ter sido premiado. Ou de um Fernando Pessoa, o genial “poliescritor”, criador dos heterônimos. Ou do poeta Mário de Sá Carneiro. Ou da poetisa Florbela Espanca. Ou de Miguel Torga. Ou de Agustina Bessa-Luís. Não citei nenhum clássico, porque quando o Nobel (que não é premiação póstuma) foi criado, todos já tinham morrido. Tanto Vergílio Ferreira merecia ser premiado, que foi instituído, em Portugal, um concorrido e cobiçado prêmio literário com seu nome. Isso, óbvio, é sinal de reconhecimento de seus conterrâneos. Pena que não tenha sido reconhecido também fora de seu país (principalmente onde se fala o nosso belo e complexo idioma, sobretudo no Brasil).

Pincei, a esmo, algumas opiniões de Vergílio Ferreira sobre variados assuntos. Como esta: “O ciúme. Que irritante. Ele é uma expressão da avidez da propriedade. Ou da petulância do domínio. Ou do gosto da escravização”. Ou esta: “Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se”. Ou esta: “Uma verdade só é verdade quando levada às últimas consequências. Até lá não é uma verdade, é uma opinião”. Ou mais esta: “Há o desejo, que não tem limite, e há o que se alcança, que o tem. A felicidade consiste em fazer coincidir os dois”. Ou esta outra: “Porque o que mais custa a suportar não é a derrota ou o triunfo, mas o tédio, o fastio, o cansaço, o desencorajamento. Vencer ou ser vencido não é um limite. O limite é estar farto”.

Espero que neste ano, em que se celebra o centenário de seu nascimento (ele nasceu em 28 de janeiro de 1916 e morreu em 1º de março de 1996, aos oitenta anos de idade), pelo menos parte de sua extensa obra (romances, ensaios e diários) seja divulgada e que nossas editoras se mobilizem para publicar um ou mais de seus livros. Está mais do que na hora de nós, brasileiros, conhecermos o que há de melhor na riquíssima literatura portuguesa (e vice-versa, claro).


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